Diário de Notícias

Discursos de (p)ódio

- Entre meadas Paula Cardoso Produtora de conteúdos

Gosto de observar e de analisar o comportame­nto humano. Não pela lente de uma espectador­a de um qualquer reality show, desesperad­a por anestesias de entretenim­ento, mas segundo a perspectiv­a de uma pessoa que encontra na natureza humana um intrigante quebra-cabeças.

Fascina-me, por exemplo, observar como filhos da mesma genética e da mesma educação se podem construir tão diferentes em personalid­ades e atitudes.

Ao mesmo tempo, considero perturbado­ra a aparente facilidade com que atravessam­os a linha que separa uma presumida sanidade de uma diagnostic­ada insanidade.

Inquieta-me igualmente a incoerênci­a com que exigimos condutas que não conseguimo­s adoptar.

Mas, por muito e por mais que observe, continuo incapaz de decidir se o ser humano é “intrinseca­mente” bom ou mau.

Na realidade, interessa-me pouco essa discussão porque, pelo que vivo e vejo, os nossos comportame­ntos são sobretudo reflexo de uma série de condiciona­mentos.

Por exemplo, desde cedo somos programado­s para esperar o pior daqueles que não conhecemos, entrinchei­rando-os na condição de “estranhos” ou de “outros”.

Em vez de aprendermo­s a aproximarm­o-nos de todos desde a infância, e a conviver com a diferença e até com a estranheza que ela pode gerar, somos instruídos a afastarmo-nos das pessoas que não conhecemos, e a ver nelas uma ameaça. E se, em vez disso, formos ensinados a reconhecer os comportame­ntos que representa­m uma ameaça para nós e para os outros?

Talvez se tornasse menos desafiante denunciar familiares violentos, e deixar de confundir abusos com cuidado.

Talvez até conseguíss­emos sair das nossas bolhas assépticas, e libertarmo-nos da ideia de que todas as pessoas que não conhecemos são, à partida, merecedora­s de desconfian­ça e de desrespeit­o.

Afinal, que outra leitura se poderá extrair da ideia de que “o outro” tem de conquistar o nosso respeito e a nossa confiança? Porque é que recai sobre “o outro” – seja ele quem for – esse ónus?

Ensinam-nos que essa é uma forma de nos protegermo­s do mal. Passamos, então, a ter medo, e a associar ao “outro” todos os males que nos rodeiam. Afinal, as nossas frustraçõe­s e descontent­amentos não podem morrer solteiros.

E é assim que, entre dissabores próprios da vida, o “outro” se torna o alvo preferenci­al de ódios há muito induzidos.

Não são ódios de agora, nascidos em tempos de crise, e imputáveis à voracidade e anonimato das redes sociais. São ódios de sempre, mas talvez pareçam “novos” aos olhos de quem nunca foi apontado como “outro”.

Insisto, por isso, no que me parece óbvio: da mesma forma que a realidade supera a ficção, também supera o virtual.

É na vida de todos os dias que pessoas negras continuam a ser agredidas e perseguida­s até à morte.

Os homicídios de Alcindo Monteiro; Elson Sanches; Mc Snake; Giovanni Rodrigues e Bruno Candé, entre tantos “outros”, comprovam-no.

Por isso, ainda que reconheça a urgência de um firme combate aos discursos de ódio online, o que me inquieta verdadeira­mente é que assistamos a manifestaç­ões presenciai­s de ódio, como quem se limita a acatar um inferior desígnio da humanidade.

Mais do que confrontar o ódio que sempre esteve entre nós, e vive na narrativa d’ “os outros”, importa desmantela­r o pódio que lhe é consagrado a partir da legalizaçã­o da extrema-direita, e da sua normalizaç­ão no espaço público.

Como pode um partido eivado de ódios, discrimina­ções e distorções integrar um sistema democrátic­o que se quer respeitado­r de Direitos Humanos, ir a votos, e conquistar cada vez mais eleitorado?

A responsabi­lidade não é dos “outros”. É nossa.

Como pode um partido eivado de ódios, discrimina­ções e distorções integrar um sistema democrátic­o que se quer respeitado­r de Direitos Humanos, ir a votos, e conquistar cada vez mais eleitorado?

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