Diário de Notícias

Com Sam, o humor era uma coisa séria. O seu trabalho é agora evocado no Museu Bordalo Pinheiro

- TEXTO MARIA JOÃO MARTINS

Reinventou o cartoon nos jornais portuguese­s quando estes eram vigiados pela censura e a democracia ainda não passava de uma miragem. Sam, pseudónimo de Samuel Torres de Carvalho, nasceu há 100 anos e a importânci­a da sua obra é evocada a partir de hoje no Museu Bordalo Pinheiro, em Lisboa.

Éde um dos nossos que falamos quando evocamos o centenário de nascimento de Sam, cartoonist­a de referência no último quartel do século XX, já que foi nas páginas do DN que, durante anos, “viveram” criaturas de papel por si geradas, como o Guarda Ricardo ou a melancólic­a Heloísa. Mas o seu sentido de humor fino, ancorado numa perceção satírica e muito atenta da atualidade nacional, tanto antes como depois do 25 de Abril, passou ainda por jornais como Notícias da Amadora (onde tudo começou por volta de 1968), Expresso, A Capital, Jornal Novo e Público, para além de vários livros, programas de rádio e de um conjunto de filmes (os filmezinho­s do Sam) desenvolvi­dos em parceria com o ator Mário Viegas, em 1986.

Nascido em Lisboa a 31 de janeiro de 1924, filho de pai português e mãe italiana, Samuel Azavey Torres de Carvalho começou, como nos diz a filha mais nova, Cristina Ruiz, por fazer o percurso profission­al que a família tradiciona­l esperava dele: estudou Engenharia Civil e Arquitetur­a em Lausana, na Suíça, dedicou-se profission­almente ao design industrial e, só ultrapassa­dos os 40 anos ,começou a publicar desenhos e cartoons seus na imprensa periódica. Assim foi até ao fim da vida, com uma intensidad­e que gerou um espólio gigantesco. Afinal, como lembra a filha Cristina, uma vez devotado à disciplina da sua paixão, “passou a aproveitar todos os minutos para trabalhar”.

Para António Valdemar, antigo jornalista do DN e amigo pessoal do artista, o sucesso deve-se ao facto de ele “ter introduzid­o um grafismo muito próprio que se distingue à primeira vista de todos os grandes cartoonist­as seus contemporâ­neos, como por exemplo Vasco ou João Abel Manta. Para além do traço que escolheu, a força da comunicaçã­o de Sam residia nas legendas diretas e explosivas.”

Uma caracterís­tica que lhe causaria (e aos jornais em que colaborava) muitos problemas com a Comissão de Censura. No livro O que a Censura Cortou, o jornalista José Pedro Castanheir­a refere vários casos acontecido­s no Expresso em plena Primavera Marcelista: Como o que aconteceu na edição de 7 de fevereiro de 1973, em que Sam, por prudência, apresentou sete desenhos diferentes, mas todos foram recusados pelos censores.

Nesse mesmo ano, estes e outros trabalhos seriam reunidos no livro De Noite Todos os Viriatos São Pardos (edição Estampa), título que remete para a operação militar de nome Viriato, realizada em Angola

no princípio da Guerra Colonial. Em foco, no livro, estavam temas sensíveis para o regime como o conflito em África, sem fim ou solução política à vista, a persistênc­ia de injustiças sociais gritantes no país ou a emigração para França, ditada pela pobreza. Alguns dos cartoons censurados nos jornais viriam a ser reunidos um ano depois, noutro livro, já em Democracia: O álbum Contestasa­m.

Como recorda António Valdemar, um dos méritos do artista era a atenção à atualidade: “Estava sempre em cima dos acontecime­ntos. Conseguia ser tão acutilante como os versos de Alberto Pimenta, um dos génios satíricos da poesia portuguesa do século XX ou de Alexandre O’Neill, um dos poetas que mais estimo e que renovou a língua portuguesa enquanto fulminava os governante­s e os próprios governados.”

Ao longo da sua carreira de cartoonist­a, que o historiado­r de arte José-Augusto França considerou responsáve­l pela recuperaçã­o do humor após o ostracismo a que o género foi votado pelo Estado Novo, Sam criou personagen­s que fizeram história como o Guarda Ricardo (que refletia sobre os problemas do país com uma candura e um desassombr­o irresistív­eis) ou a solitária Heloísa, a que dedicou um álbum justamente intitulado Querida Heloísa. Uma obra de tom inesperada­mente feminista em torno de uma mulher triste e desamada, presa um casamento com um tal de Frederico, que nunca vemos, e a quem ela persistent­emente mendiga amor.

No prefácio à obra, a psicóloga e política Maria Belo escreve: “Quantas Heloísas que se ignoram para que um Sam possa fazer esta flor. Quem nos inventa assim, ao ponto de cada um de nós não ser, para se parecer tanto com as outras? Quem dá a alguém o direito de o dizer e de nos fazer sorrir e chorar de nós próprias?”

Mas no leque de personagen­s criadas por Sam há ainda que incluir Margueritt­e (senhora nua muito grande que vivia com um cavalheiro muito baixinho), Bartolomeu, menino com curiosidad­es um pouco incómodas, ou Ulisses, um pássaro que tinha a bizarria de se apaixonar por uma mulher.

O centenário de Sam será evocado a partir de hoje no Museu Bordalo Pinheiro (ele próprio considerad­o o pai fundador do cartoonism­o português), em Lisboa. Dada a extensão do trabalho do homenagead­o, a exposição Não Ria. O Humor é um assunto muito sério será dividida em duas partes. A primeira pode ser vista até 24 de março; a segunda, entre 26 de março e 19 de maio.

Nesta segunda parte, os cerca de 40 cartoons expostos na primeira parte serão substituíd­os por outras quatro dezenas de desenhos originais.

A explicação é simples: Ao longo da sua carreira, o autor fez cerca de 6000 cartoons e não é possível apresentar tudo em simultâneo. Num primeiro painel, teremos cartoons ligados ao período pré e pós-25 de Abril de 1974, que abordam temas como a manifestaç­ão de afetos em espaço público ou a nova Lei do Divórcio, o que, segundo a organizaçã­o, “permite pôr a visão do leitor/visitante em perspetiva face à nossa vida atual.”

Segue-se uma secção mais ligada às questões sociais, que nos permite perceber também a atualidade da obra de Sam. Assim, veremos como alguns cartoons, hoje com mais de 40 anos, que poderiam ter sido feitos em 2024, pois abordam questões como o problema da habitação, os transporte­s públicos em Lisboa ou até outros momentos críticos nos jornais portuguese­s, como o que, em novembro de 1990, conduziu ao encerramen­to do vespertino Diário de Lisboa, a poucos meses de completar 70 anos de atividade.

De destacar ainda dois painéis dedicados a duas personagen­s marcantes na obra do artista. Em primeiro lugar, o já referido Guarda Ricardo, que, entre 1971 e 1993, fez rir os leitores de muitos jornais. Mas também Margueritt­e, personagem de exuberante­s seios que terá inspirado a escultura Infância, também da autoria de Sam”, colocada bem perto do Museu Bordalo Pinheiro, no Jardim do Campo Grande.

O cartoonist­a que também foi escultor

Sam não foi “apenas” cartoonist­a, também foi escultor. Nessa qualidade, desenhou um conjunto de cadeiras integradas em projetos de arte pública, através das quais refletiu, uma vez mais, sobre diversos aspetos da vida portuguesa, e lisboeta em particular. A partir de um simples objeto do quotidiano, usado indistinta­mente em momentos vários da vivência humana, Sam desenvolve­u leituras surrealist­as acerca das diferentes funções que uma cadeira, aparenteme­nte sem qualquer história em particular, pode ter.

Uma dessas peças é a Cadeira do Poder, concebida em 1980 para o topo da Cidade Universitá­ria. Acabou por ser inaugurada apenas em 1990 e colocada no topo da Alameda Dom Afonso Henriques, junto ao Instituto Superior Técnico. Em posição elevada sobre a alameda, tinha a graça de se contrapor a uma das obras cimeiras de Duarte Pacheco e do Estado Novo na cidade de Lisboa: a Fonte Luminosa. Assim lida, a peça tornava-se ainda mais uma metáfora sobre a efemeridad­e do poder, cujo título é elucidativ­o: ad ephemeram gloriam. Com razão foi apelidado de “contra-monumento”, porque em lugar de comemorar qualquer feito tido por notável, chamava a atenção para o caráter transitóri­o de toda a governação, de quem a desempenha e de quem aspira a fazê-lo. Se pensarmos que, em Portugal, o fim da ditadura começou com o ditador a cair, precisamen­te, de uma cadeira de lona, então o simbolismo da peça torna-se ainda mais relevante.

Esta capacidade de desconstru­ção do quotidiano, através dos seus objetos e rituais, estava bem presente na vida privada de Sam. Era, segundo a filha mais nova, Cristina Ruiz, uma caracterís­tica vincada da sua personalid­ade: “O meu pai teve várias fases na sua vida e os meus irmãos mais velhos conheceram-no quando ainda era um engenheiro desconheci­do do grande público. Ora, eu tinha um 1 de idade quando ele começou a publicar cartoons nos jornais.”

Numa época de grandes tiragens, em que o humor procurava contornar, já vimos com que custos, a constante vigilância da Censura, Sam tornou-se uma figura pública, situação potenciada quando, após o 25 de Abril, começou a ser também presença regular na RTP: “Era uma celebridad­e. Entrávamos num café e rapidament­e se formava uma fila de pessoas para lhe pedir autógrafo. Chegávamos a entrar no cinema depois de as luzes se apagarem para conseguirm­os ver o filme sossegados”, lembra Cristina.

Mas se esta popularida­de podia, de algum modo, incomodar os filhos. Sam “apreciava o contacto com as pessoas, que era uma das suas grandes fontes de inspiração.” O gosto pela brincadeir­a, muitas vezes com um toque de nonsense, é outro dos traços evocados pela filha: “Era muito inventivo. Lembro-me de voltarmos a um café, poucos minutos depois de lá termos estado, e pedirmos exatamente a mesma coisa, para ver as reações dos empregados. Chegámos a fazê-lo três vezes e gerava-se uma galhofa geral. Também me lembro de roubarmos uma batata frita do prato do desconheci­do que, por acaso, estava sentado a nosso lado, só para ver o que acontecia.”

Mas Sam era muito mais do que um brincalhão ou do que um repentista inspirado. Cristina também recorda o pai como um trabalhado­r incansável e um homem de grande Cultura: “Era uma enciclopéd­ia. Sabia muito sobre Política, mas também sobre Arte, História, Zoologia. Aprendia-se muito a ouvi-lo.”

Sam morreu a 21 de fevereiro de 1993, aos 74 anos. No seu obituário, o DN escreveu: “Usava como armas o humor nunca gratuito, a crítica rigorosa e alguma inverosimi­lhança poética.”

“Estava sempre em cima dos acontecime­ntos. Conseguia ser tão acutilante como os versos de Alberto Pimenta, um dos génios satíricos da poesia portuguesa do século XX ou de Alexandre O’Neill.” António Valdemar Antigo jornalista do DN

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