A romancista e a Lei da Gravidade
ÓSCAR Chega às salas portuguesas o filme vencedor da última Palma de Ouro, que pode beliscar o favoritismo de Oppenheimer nos Óscares. Anatomia de Uma Queda, de Justine Triet, expõe em tribunal as dores de um casamento, enquanto julga uma mulher pela morte do marido. O segredo do sucesso começa na sua atriz, Sandra Hüller.
Do muito que se tem escrito sobre Anatomia de Uma Queda, ressalta a ideia de um filme sobre o espaço inescrutável de um casal e a verdade enterrada em cada um de nós, difícil de traduzir na língua do outro (já lá vou). Mas talvez ainda não se tenha dado a devida importância à narrativa em si como objeto de estudo: a história da queda que aqui acontece (um homem caiu, ou atirou-se, ou foi empurrado do cimo de um chalé) é trabalhada com o espírito de um romance, em que a sua protagonista, ela própria uma escritora, a certa altura se vê examinada em tribunal pela nudez das suas palavras num livro. Uma “prova” usada pelo advogado de acusação, que procura, através da especulação literária, sustentar o instinto que nos diz que aquela mulher é culpada. Sim, porque também nós estamos a ser julgados pelo filme, que pressente a forma como olhamos para a suposta frieza de Sandra (Sandra Hüller), personagem que se mantém pouco legível mas inquietante à perceção alheia... Isto para dizer que no centro de tudo estará a vertigem da narrativa que somos aos olhos dos outros; tanto por aquilo que exprimimos como pelas construções livres feitas sobre o território da incerteza que podemos representar.
Esta queéa primeira obra verdadeiramente consistente e madura de Justine Triet – de quem por cá se estreou a boa comédia Na Cama com Victoria e o esquecível Sibyl –, surge, a pouco mais de um mês da cerimónia dos Óscares, como a ameaça mais séria ao poderio americano do Melhor Filme. Uma produção francesa, em grande parte falada em inglês, capaz de equilibrar o drama conjugal e de tribunal com o thriller, numa estrutura que tem como alicerce a sua atriz. Com efeito, a alemã Sandra Hüller contém na dita assombrosa ilegibilidade a força e fascínio de um filme que joga com a (potencial) ficção permanente das relações humanas.
Quando a vemos pela primeira vez, sentada no seu chalé nos Alpes franceses, a dar uma entrevista a uma estudante, na qualidade de autora de renome, Sandra instala a atmosfera ambígua através de uma postura tão sedutora, quanto incomodada – é que, algures num andar de cima, o marido pôs música em altos berros, impedindo que se ouçam devidamente uma à outra.
A jovem acaba por se ir embora, e o filho do casal, um miúdo cego (que perdeu a visão num acidente), também sai para ir passear o cão. Ao regressar, encontra o pai estendido na neve à porta de casa, sem vida... Seguem-se as diligências necessárias, e desde o momento em que a morte é considerada “inconclusiva”, Sandra passa a ser a principal suspeita, em caso de homicídio, sem conseguir provar que ele caiu do sótão do chalé de forma acidental ou se suicidou.
Na verdade, quando ela recorre a um amigo advogado para a sua defesa, nem sequer dá largas à hipótese de suicídio, mostrando-se protetora da ideia (lá está, a narrativa) que se pode formar sobre Samuel, esse marido até ali só visto em fotografias, ou morto. E a partir daqui, Triet põe em marcha o escrutínio gravítico desta mulher, que em tribunal se vai deparar com a gravação de uma briga arrasadora com Samuel – o único flashback do filme –, que o próprio registou sem o seu consentimento, para vir a usar num romance. Será que a discussão foi provocada para efeitos de “material ficcional”?
Entre marido e mulher
Voltamos então à índole romanesca de Anatomie d’Une Chute. A saber: parte do que o referido litígio revela tem que ver com o ressentimento profissional, uma vez que Sandra terá usado ideias de Samuel nos seus próprios romances (um tema já presente em Sibyl), secando a possibilidade de ele se destacar como escritor.
Mas claro que estamos só focados numa das feridas deste casamento, sendo que as duas personagens implicadas – ele, francês, ela, alemã – não comunicam nas respetivas línguas maternas, servindo-se do inglês como plataforma de mediação, que nunca traduz plenamente a verdade mais íntima. Conquanto osco argumentistasdo filme sejamos dois franceses, este cenário não se alheia do facto de esses argumentistas – a própria Justine Triet e Arthur Harari – serem marido e mulher, ambos profissionais a “competir” na indústria do cinema. Já agora, há qualquer coisa de coincidência poética, ou não, em termos visto Harari a interpretar um advogado de defesa n’O Processo Goldman, de Cédric Kahn, estreado há poucas semanas nas nossas salas ...
Mas então, Sandra matou ou não matou? Honestamente, esta não será a pergunta que interessa em Anatomia de Uma Queda. Triet, que com certeza viu Anatomia de Um Crime (1959), de Otto Preminger, e
Testemunha de Acusação (1957), de BillyWilder, inspirou-se na conduta encorpada dos clássicos, subtraindo-lhes a febre americana e deixando as palavras e o não-dito (justiça seja também aqui feita ao jovem ator Milo Machado Graner, na pele do filho cego) convergirem para uma consciência superior à resolução do mistério.
Sem cair na expressão balofa das pistas que apontam em direções diferentes, para manter o espectador “engajado”, a realizadora escolheu a linha ténue e engenhosa da incerteza, que puxa a nossa atenção para a necessidade básica da narrativa. Convém ter sempre uma à mão, como kit de sobrevivência.
Está na Filmin este filme da seleção oficial de Veneza 2022, inédito que já esteve invisível no das operadoras, coisas do nosso mercado que não respeita o nome de Walter Hill, realizador de clássicos como ou Com Willem Dafoe e Christoph Waltz.
Não é o western spaghetti que o título e a cor sépia prometia. É apenas um western que quer ser um exercício de revivalismo que não convence. Dead for a Dollar, muito diretamente, é daqueles casos que todos os cinéfilos queriam que fosse relevante mas que, na prática, é apenas inconsequente. E esse desejo “romântico” parte do percurso de Walter Hill, cineasta a hibernar, aclamado no passado por obras como 48 Horas (1982), Estrada de Fogo (1984) e A Fronteira do Fogo (1987), símbolo de um cinema de ação de Hollywood do lado do autor. Hill que já tinha feito exercícios de reciclagem do género em Wild Bill (1995) e Jerónimo – Uma Lenda Americana (1993) e que era visto por historiadores de cinema como um respigador. Desta vez, no limite, há um lado de elegia à figura do pistoleiro esquecido, neste caso o caçador de recompensas de criminosos, algo muito próximo de um folclore de um ideal de justiça à flor da pólvora.
No começo somos postos à prova no lugar do cliché do espetador: o caçador de recompensas Max (Christoph Waltz) é confrontado pelo seu inimigo, o criminoso Joe, um jogador que é libertado da prisão após cumprir pena. O ódio entre os dois é combustível a queimar mas cada um parte para direções opostas. Mais tarde, Max é visto numa nova missão: perseguir uma mulher branca (Rachel Brosnahan) e um homem negro (Brandon Scott) em fuga do Exército americano, ambos a tentar uma nova vida através de um esquema de falso resgate. Está em causa uma questão de preconceito racial e de atração romântica “proibida”. Uma narrativa que parece querer convocar um comentário histórico que parece querer falar de elevação feminista ou inclusão. Parece mas não consegue...Há uma inaptidão no storytelling que deixa adivinhar outro lugar comum: a falta de prática. Walter Hill perro e sem rotina de ritmo, presume-se...Mesmo que muitas vezes se perceba que os problemas estão no argumento tão preguiçoso como vazio. Afinal de contas, as linhas da sinopse pressupõem sabotagens a níveis de encadeamento, não comunicam uma única ideia de cinema.
Caçadores de Recompensa tem ainda outra falha fatal: disfarça-se de Série B para escamotear a sua falta de cadência: Os atores, todos eles acima de qualquer suspeita, estão desamparados, em especial Christoph Waltz, ator que parece em trip insana de auto caricatura. Contado ... ninguém acredita. Tu dois totem uma possibilidade de redenção por pequenos gestos nostálgicos: Walter Hill sabe enquadrar, sabe dialogar por uma ideia de balada perdida de cinema. É aquele contraste de saber estar a filmar algo que nãoédes te tempo, algo queép ara ser sentido como antropologia perdida de Hollywood. Em última anál is e,é um exercício de estilos em estilo. Sóissoéumges to coragem de cinema, pena somente este aparato de cinema ser uma loja dos trezentos de naftalina.
Outra das redenções possíveis ideológicas do filme é poder propor algo muito raro hoje em dia: um filme de género desencantado que sabe muito bem não se levar a sério.