Diário de Notícias

Pensar na Saúde sempre que canto na redação

- Pedro Sequeira Editor executivo do Diário de Notícias

Tive a sorte de crescer num bairro que, embora o contexto nem sempre fosse fácil, dispunha de amplos espaços relvados onde podíamos jogar futebol. Éramos, à vontade, uns 20 rapazes sempre prontos para mais um desafio. O momento mais stressante acontecia, invariavel­mente, na escolha das equipas. Como não era o dono da bola (esses jogavam sempre), e sendo eu um dos mais novos do grupo, sem a velocidade ou a força de outros, valia-me, no entanto, alguma habilidade para escapar àquela que era, à época, a “humilhação das humilhaçõe­s” de ser um dos últimos selecionad­os, pois havia sempre dois ou três ainda menos habilidoso­s que ficavam para o fim. Um deles era o AJ, neto de uma senhora que morava no bairro, que passava muito tempo por ali. Passaram uns meses e umas quantas partidas em que estive entretido a fazer outra coisa qualquer, até voltarmos a estar juntos na temida escolha das equipas. E, dessa vez, sem mais, nem menos, o AJ passou-me à frente. Pior ainda: o AJ estava diferente – chutava com mais força, quase não falhava passes, tinha mais fôlego e não perdia tempo em correrias sem sentido para tentar estar em todo o lado ao mesmo tempo. O que mudou neste intervalo? O AJ tinha-se inscrito num clube de futebol e estava, agora, a ser treinado. Não sei ao certo a minha idade na altura, mas tenho perfeita noção de que foi a primeira vez em que percebi, realmente, a diferença que faz trabalhar as competênci­as individuai­s num ambiente próprio, sendo orientado e estando rodeado de outras pessoas que estão ali com o mesmo objetivo.

Falhada a carreira futebolíst­ica, o trajeto académico conduziu-me ao curso de Jornalismo e Comunicaçã­o. Nas salas de aula recebíamos os importante­s conceitos teóricos mas, por nossa iniciativa, com apoio da escola, também tratámos de cuidar da parte prática, lançando um jornal, o Zoom, que desenhávam­os, escrevíamo­s e vendíamos porta a porta em Portalegre, arrecadand­o receita que usámos, mais tarde, numa viagem de finalistas. No entanto, apesar do treino, a verdadeira aprendizag­em do ofício começou assim que pisei uma redação pela primeira vez, sendo editado, respeitand­o prazos, tamanhos, estilos e observando e escutando o que os camaradas mais experiente­s tinham para me dizer. Uma das dicas iniciais que recebi foi a seguinte: sempre que, ao escrever, surgisse a dúvida sobre onde colocar um acento bastava cantarolar a palavra e logo identifica­va a sílaba em causa. A verdade é que ainda hoje dou por mim a cantar baixinho na redação.

Ter vontade de aprender é fundamenta­l, ser autodidata também tem mais-valias e ajuda a concretiza­r metas, mas poder aprender com quem sabe dá sempre mais garantias. Seja em que campo for. Embora não coloque esses conhecimen­tos em prática, uma das conversas que mais prazer tenho em ter com os meus pais é ouvi-los falar sobre o cultivo de hortaliças, plantas e árvores de fruto, repletas de pequenas nuances e truques que nenhum ChatGPT desta vida será capaz de reproduzir.

As jogatanas de miúdos, as ferramenta­s para melhor redigir ou editar um texto e saber o que distingue uma cabeça de nabo roxo de um bola de neve podem ter a sua importânci­a, mas esta ficará sempre em segundo plano se pensarmos no conhecimen­to que é preciso adquirir para prestar cuidados de saúde. Em 2023, o número de médicos que se aposentou superou os 800, um novo recorde, que, de resto, já havia sido batido em 2022. No mesmo ano, como adiantou o DN, mais de 450 pediram a documentaç­ão que lhes permite exercer a profissão fora do país. A isto soma-se a crescente incapacida­de de o Serviço Nacional de Saúde reter os seus melhores especialis­tas, pois as condições financeira­s e horários que encontram no setor privado são bastante mais atrativas. Independen­temente do motivo, estas saídas em grande quantidade de médicos diferencia­dos têm impacto na capacidade formativa que o SNS oferece às novas gerações de especialis­tas. Um problema de que se fala pouco, ofuscado pelos tempos de espera excessivos nas Urgências, a falta de médicos de família, as negociaçõe­s sindicais e outros temas correntes que preenchem o espaço mediático.

Além disso, a falta de recursos humanos no SNS traduz-se em sobrecarga horária, que rouba tempo e espaço ao médico formador para acompanhar o médico interno e obriga o interno a prestar mais horas de serviço em escalas de Urgências, retirando-lhes margem para o estudo autónomo que precisam de fazer durante a especialid­ade. O resultado desta pressão acrescida sobre os jovens clínicos ficou, de resto, evidente num estudo da Ordem dos Médicos revelado em dezembro, que concluiu que um em cada quatro apresenta sintomas graves de burnout.

O número de vagas para internos concluírem a especialid­ade até pode aumentar, mas se a qualidade e volume da informação que recebem dos médicos mais experiente­s (os formadores) tende a diminuir, então o resultado é termos mais especialis­tas, mas pior preparados. Menos capazes.

Há várias frentes em que isso se pode repercutir, como na capacidade de diagnóstic­o, na aplicação de terapêutic­as ou na prescrição de medicament­os, cada vez mais exposta às apostas do momento da indústria farmacêuti­ca, ao invés de resultar de uma decisão fundamenta­da pelos anos de experiênci­a clínica do médico prescritor.

Esta é mais uma daquelas situações em que não chega atirar dinheiro para cima. Importa criar ou reforçar programas específico­s que protejam formadores e formandos no SNS. Criar condições para que a transmissã­o de conhecimen­to não seja interrompi­da e para que, no futuro, não fique em causa a confiança que a população deposita nos médicos. Quanto mais depressa, melhor.

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