P&R A revolta do azoto, a concorrência da Ucrânia e o mal-estar dos agricultores
Os Países Baixos foram um laboratório para as lutas dos agricultores contra as políticas de proteção ambiental e em breve até poderão ter um partido seu no governo. O orçamento da UE é canalizado em quase um terço para o setor, mas insuficiente para cobrir os custos crescentes e as margens curtas. Alguns governos já apresentaram medidas nesta semana.
Bruxelas renovou a isenção de direitos aduaneiros ucranianos por um ano, mas prevê reintroduzir taxas em certos produtos.
Quando começou a revolta do mundo rural?
Os protestos do setor agrícola na União Europeia são cíclicos e deviam-se sobretudo à aplicação da Política Agrícola Comum (PAC), um instrumento que capta quase um terço do orçamento comunitário (a soma de 387 mil milhões de euros no período 2021-2027). Uma nova frente de conflito foi aberta com a necessidade de adaptar a agricultura no combate às alterações climáticas e ao objetivo da neutralidade de emissões prevista no Pacto Ecológico Europeu. Em 2019, os proprietários de explorações agropecuárias dos Países Baixos entraram em conflito com o governo: o segundo maior exportador mundial de produtos agrícolas é também o maior poluente europeu de azoto, sendo 46% das emissões atribuídas ao estrume do gado. A aprovação parlamentar de uma política para reduzir a emissão daquele gás, limitando o número de cabeças de gado para metade, foi o rastilho para a revolta. O movimento ouviu palavras encorajadoras de Donald Trump por lutar “contra a tirania climática”. O braço-de-ferro mantém-se até hoje, mas as circunstâncias políticas mudaram. O lóbi ganhou poder com o partido populista de direita BBB (Movimento Agricultor Cidadão), fundado em resposta às limitações ambientais. Liderado por Caroline van der Plas, o BBB ficou à frente nas eleições provinciais e do Senado, que decorreram no ano passado. Nas legislativas que decorreram em novembro, o partido ficou em sexto lugar, mas poderá vir a integrar a coligação liderada por Geert Wilders.
A UE é o principal inimigo?
Os motivos da revolta são os mais variados, mas há um discurso comum de crítica a Bruxelas. As medidas de adaptação climática e de proteção ambiental são as mais contestadas, mas também há críticas à densidade da legislação comunitária, aos elevados custos administrativos impostos pela UE, bem como a concorrência desleal da Ucrânia e dos países do Mercosul se o tratado de comércio livre for ratificado.
Há falta de dinheiro?
Os agricultores queixam-se de custos crescentes e de margens esmagadas pelos retalhistas. Nalguns países, como na Grécia, lamenta-se que os subsídios da PAC tenham vindo a diminuir há mais de uma década. O que não falta, porém, é dinheiro comunitário: 387 mil milhões de euros para a agricultura entre 2021 e 2027. Um dos problemas é a transformação do modelo de negócio. O setor perdeu mais de 5 milhões de trabalhadores entre 2005 e 2020, a grande maioria de pequenas explorações agrícolas. Agora cerca de 80% do bolo da PAC tem como destinatário as empresas da agroindústria, de exploração intensivista, e que representam um quinto dos agricultores.
A Ucrânia é foco de tensão?
Sem dúvida. Camionistas e agricultores polacos bloquearam quatro passagens fronteiriças com a Ucrânia em novembro contra as importações mais baratas vindas de leste, um protesto replicado na Roménia já em janeiro. Consequência da invasão da Rússia, a Ucrânia viu estrangulada a exportação de produtos agrícolas, que seguia pelo Mar Negro. A Ucrânia é o décimo maior produtor mundial de cereais, pelo que o bloqueio russo provocou um aumento dos preços a nível global e insegurança alimentar. Antes da iniciativa do Mar Negro, negociada pela ONU e Turquia, e que permitiu o trânsito de mais de 32 milhões de toneladas de cereais ucranianos durante um ano, a União Europeia decidiu, em maio de 2022, suspender os direitos aduaneiros e as quotas sobre as exportações ucranianas.
Qual foi a resposta da Comissão?
A medida foi renovada na quarta-feira por mais um ano, mas à luz dos protestos traz novidades: há agora um mecanismo de salvaguarda, através do qual se aplica taxas aduaneiras em certos produtos (aves de capoeira, ovos e açúcar) se as importações excederem a média dos dois anos anteriores. Além disso, a proposta da Comissão também prevê atuar se os mercados de um ou mais Estados-membros ficarem distorcidos por um aumento descontrolado de importações de outros produtos, como os cereais. Além disso, numa cedência aos agricultores, o pousio obrigatório de 4% de terras aráveis foi adiado um ano, desde que as plantações sejam de culturas fixadoras de azoto e não recorram a pesticidas.
A entrada da Ucrânia na UE vai ser pacífica no que respeita aos agricultores?
Dificilmente. Em janeiro de 2022 nem o mais fervoroso adepto da inclusão da Ucrânia no clube europeu seria capaz de antever que em tão pouco tempo o país ganharia estatuto de candidato e de se abrirem as negociações formais para a adesão. Daí até à concretização vão muitos passos e um dos que mexerá com mais interesses é o que se relaciona com a PAC. Segundo um cálculo do secretariado-geral do Conselho, o impacto da entrada da Ucrânia representa um corte de 20% aos outros estados-membros.
Que governos cederam?
O orçamento federal aprovado ontem na Alemanha já prevê que o gasóleo agrícola continue a ser subsidiado. Também na sexta-feira o governo romeno assinou acordo com os agricultores e transportadores que inclui subsídios mais elevados ao gasóleo e mais rapidez na atribuição. Em França, o governo anunciou uma bateria de medidas, da mais simbólica – inscrever a soberania alimentar na lei – à prática, como controlar a aplicação de leis existentes que garantem um rendimento assegurado aos agricultores, o não aumento do imposto do gasóleo agrícola e 400 milhões de euros em ajudas. Mas se os franceses levantaram os bloqueios, na próxima sexta-feira será a vez dos congéneres polacos iniciarem uma greve geral com bloqueios das fronteiras com a Ucrânia.