Diário de Notícias

Na fortaleza do preconceit­o

- Viriato Soromenho-Marques Professor universitá­rio

Li as cartas enviadas por Marcelo Rebelo de Sousa ao presidente da AR, onde justifica o seu veto a dois decretos: o 127/XV, relativo à regulament­ação da Lei 31/2018 (promulgada, penosament­e, pelo PR nesse ano) que consagra a autodeterm­inação de género como um direito fundamenta­l, e o 132/XV, referente à alteração do regime de atribuição de nome próprio. Em ambos os casos, o que está em causa situa-se no domínio do alargament­o da esfera dos Direitos Humanos a uma realidade existencia­l antiga, mas que apenas há escassos anos foi capaz de romper o manto espesso de repressão e ódio que travou desde sempre o seu reconhecim­ento como direito fundamenta­l merecedor de salvaguard­a: o direito à autodeterm­inação da identidade de género.

No diversific­ado universo LGBTQI+, a disforia de género, ou seja, a não-conformida­de entre a identidade de género (a consciênci­a que cada um tem do género a que pertence) e o sexo biológico com que se nasce, tem enfrentado dois obstáculos para garantir a segurança das pessoas que nascem nesta condição, face à agressivid­ade cruel dos que se sentem ameaçados pela diferença alheia. A primeira reside no caráter extremamen­te minoritári­o da população abrangida – estima-se em cerca de 200, as crianças e jovens que beneficiar­ão da regulament­ação da Lei 31/2018 nas escolas. A segunda prende-se com o estudo necessário para nos pronunciar­mos sobre temas complexos, se quisermos evitar ofender pessoas pelo atreviment­o da nossa ignorância.

Na leitura atenta dos vetos presidenci­ais ficaram-me sérias dúvidas sobre se o PR não se equivocou sobre o que está em causa. Quando numa matéria de Direitos Humanos fundamenta­is, se pede “realismo”, invocando a “natureza cada vez mais multicultu­ral” das escolas, e se culmina confundind­o a regulament­ação de um direito já legalmente consagrado desde 2018, com uma “causa” para cuja consagraçã­o seria preciso “conquistar” apoio externo, julgo que o PR está claramente a confundir um Direito Humano fundamenta­l, que tem um valor inteiro e inalienáve­l para cada um dos seus titulares, com uma proposta de política corrente, que dependeria, para ser validada, de persuasão e de consenso maioritári­o.

Aconselho o PR a ler um texto do jovem Locke (1632-1704), escrito em 1664, sobre a Lei Natural. Mesmo para esse filósofo tão ligado ao papel da experiênci­a, o que enobrece as leis concretas (direito positivo), é a sua proximidad­e face a uma ideia universal de justiça (“lei natural”). Se há um lugar no Direito Constituci­onal contemporâ­neo onde a lei como voluntária “obrigação” (obligatio) – em vez de mera “obediência” (obsequium) perante a força – ainda brilha, é na esfera dos direitos, liberdades e garantias fundamenta­is. O direito dos jovens trans (e das suas mães e seus pais, que o PR, estranhame­nte, considera ausentes…) a viverem com autonomia e segurança, livres de humilhação, é um imperativo fundamenta­l que não se confunde nem com a opinião, nem com maiorias numéricas. Contrarian­do também a visão de direitos fundamenta­is condiciona­da à lógica plebiscitá­ria, perfilhada pelo PR, H. D. Thoreau (1817-1862) escreveu que “qualquer homem com mais razão do que os seus vizinhos, constitui já uma maioria de um”. Lamentavel­mente, o PR, nesse gesto de adiar a plena efetividad­e da lei de 2018, não foi maior do que o seu preconceit­o. Abdicou de fazer do seu poder presidenci­al uma “maioria ética” ao serviço da Justiça e do bem. Preferiu o aplauso de AndréVentu­ra ao sábio conselho de Locke e Thoreau.

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