Diário de Notícias

O desejo de filmar o impossível

Através de títulos tão excecionai­s como India Song (1975), a filmografi­a de Marguerite Duras propõe inusitadas alianças entre as imagens e as palavras — como ela dizia, o que conta não são as personagen­s, mas as “vozes”.

- J.L.

ARezam as crónicas que, quando começou a assinar argumentos para cinema, Marguerite Duras terá ficado algo desiludida com os filmes daí resultante­s. Não tanto Hiroshima, Meu Amor, mas sobretudo a adaptação de Moderato Cantabile (entre nós intitulada Recusa), assinada por Peter Brook em 1960, com Jeanne Moreau e Jean-Paul Belmondo nos papéis principais. Além do mais, convenhamo­s que, mais tarde, e apesar da honestidad­e dos seus esforços, a adaptação do romance O Amante, assinada em 1992 por Jean-Jacques Annaud, ficou muito aquém da vibração emocional do livro.

A passagem para a realização deu-se em 1967, com La Musica, a partir da peça homónima da própria Duras, com Delphine Seyrig e Robert Hossein. Era ainda uma solução de compromiss­o, já que o filme surgia coassinado por Paul Seban. A direção a solo aconteceu a partir de 1969, com Destruir, Diz Ela.

O mínimo que se pode dizer da filmografi­a de Duras é que possui tanto de fascinante como de enigmático, sempre em paralelo com a sua produção escrita. O seu derradeiro filme, por exemplo, intitulado Les Enfants (1985), tem qualquer coisa de comédia do absurdo centrada numa criança, Ernesto, de 7 anos, cujo intérprete é um adulto (Axel Bogousslav­sky). Não se reconhecen­do nas regras do mundo organizado pelos mais velhos, Ernesto recusa frequentar a escola, desafiando qualquer lógica institucio­nal, porque “não quer aprender as coisas que não sabe”…

Tudo isto, escusado será sublinhá-lo, surge sempre através de um envolvimen­to muito particular das palavras e das imagens, daquilo que vemos e ouvimos, das suas coincidênc­ias e contrastes.

Aliás, Duras possui na sua filmografi­a dois títulos que resultam de uma singular relação entre as imagens e os sons: India Song (1975) e Son Nom de Venise dans Calcutta Désert (1976). O primeiro, baseado na sua peça homónima, encena a personagem de Anne-Marie Stretter (Delphine Seyrig) numa história de amor e perdição na Índia britânica da década de 1930; o segundo retoma os mesmos diálogos, agora escutados em cenários vazios de personagen­s. Ou como a própria Duras disse, um dia, numa conversa com Jean-Luc Godard: “Nos meus filmes ninguém fala — há vozes” (Duras/Godard – Dialogues, Post-Éditions, 2014).

Tudo se passa como se o cinema de Duras, mais do que reproduzir o mundo tal como o conhecemos, expusesse a fragilidad­e do nosso conhecimen­to através de narrativas sobre os mundos que, apesar de com eles convivermo­s, não vemos, nem sabemos escutar. Lembremos a poesia agreste de Nathalie Granger (1972), com Jeanne Moreau e Gérard Depardieu, retratando uma intimidade de novo assombrada pela infância, a visão da paisagem urbana na curta-metragem Les Mains Négatives (1978), ou ainda essa teia fascinante de memórias e utopias que encontramo­s em L’Homme Atlantique (1981), com a própria Duras e o seu companheir­oYann Andréa (1952-2014). Como ela diz num dos diálogos com Godard, trata-se de filmar qualquer coisa que pertence ao domínio do impossível, “tornado possível, mas nunca vivido.”

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Claude Mann e Delphine Seyrig em India Song: histórias de amor e perdição.

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