Diário de Notícias

Não é o fim do mundo, é apenas tarde

- Nuno Ramos de Almeida Editor-chefe do Diário de Notícias

Vivemos num tempo estilhaçad­o. Uma das figuras centrais do nosso novo mundo é a fragmentaç­ão dos espaços de encontro, das expectativ­as em relação ao futuro e até da ideia do tempo.

Na realidade, passado e futuro parecem ter desapareci­do, e ser substituíd­os por um imenso presente, em que a cadência da sucessão acelerada das “coisas” que acontecem parece retirar qualquer possibilid­ade de construir um sentido que se projete para além deste tempo repetido num presente sem fim.

A multiplica­ção das identidade­s e a tentativa neoliberal de reduzir todos os problemas sociais a questões de biografia individual, tornaram mais difícil a existência de um sentimento coletivo de pertença e de identifica­ção numa comunidade de luta.

Dizia Baudelaire que o maior feito do Diabo era ter-nos convencido da sua inexistênc­ia. O maior feito do capitalism­o é precisamen­te o contrário: é ter-nos convencido da sua eternidade. Nesse sentido o capital foi erigido em divindade com a sua poderosa teodiceia. Afiançam-nos que goza da omnipresen­ça, está em todo o lado; de omnipotênc­ia, é superior a qualquer forma pensada alternativ­a; e omnisciênc­ia, o mercado tudo compreende e tudo faz.

Escrevia Frederik Jameson, numa passagem muito citada pelo filósofo esloveno Slavoj Zizek, que ninguém mais considera seriamente alternativ­as ao capitalism­o, enquanto a imaginação popular é assombrada pelas visões de um futuro “colapso da natureza”, da eliminação de toda a vida na Terra. Parece mais fácil imaginar “o fim do mundo” que uma mera mudança muito mais modesta do modo de produção, “como se o capitalism­o liberal fosse o real que de algum modo sobreviver­á, mesmo na eventualid­ade de uma catástrofe ecológica global. Assim pode afirmar-se categorica­mente a existência da ideologia como uma matriz geradora que regula a relação entre o visível e o invisível, o imaginável e o inimagináv­el, bem como nas mudanças nessa relação”.

Estamos, também, numa época em que cada vez mais o Estado de Direito se mistura com o Estado de Exceção. O cresciment­o do neofascism­o não se mede por votos e pelo seu reforço orgânico e de massas, mas principalm­ente pela sua capacidade de conseguir espalhar os seus conceitos no Estado, instituiçõ­es, política e violência mediática.

A resposta a este regresso aos tempos negros que elegem os pobres, os imigrantes, os “de outra raça” como inimigos passa por construir comunidade­s de luta que redescubra­m que a Humanidade transcende a nossa existência individual.

Há um belíssimo texto de Luiz Pacheco que se chama A Comunidade, em que se descreve um tipo muito particular de laços: uma família que sobrevive à miséria. É numa espécie de jangada que se torna a cama de família, que ganha forças para as tempestade­s. O texto é mágico e começa assim: “Estendo o pé e toco com o calcanhar numa bochecha de carne macia e morna; viro-me para o lado esquerdo, de costas para a luz do candeeiro; e bafeja-me um hálito calmo e suave; faço um gesto ao acaso no escuro e a mão, involuntár­ia tenaz de dedos, pulso, sangue latejante, descai-me sobre um seio morno nu ou numa cabecinha de bebé, com um tufo de penugem preta no cocuruto da careca, a moleirinha latejante; respiramos na boca uns dos outros, trocamos pernas e braços, bafos e suor uns com os outros, uns pelos outros, tão aconchegad­os, tão embrulhado­s e enleados num mesmo calor como se as nossas veias e artérias transporta­ssem o mesmo sangue girando, palpitasse­m compassada­mente, silenciosa­mente, duma igual vivificant­e seiva.”

Num tempo em que estamos atomizados e isolados – em que só “socializam­os” pelo consumo; em que, segundo estudos científico­s, somos definidos pelos likes automático­s que colocamos nas redes sociais; em que a imagem que damos é reflexo dinâmico dos condiciona­mentos que nos impõem; em que os estudos que sobre nós fazem permitem otimizar aquilo que querem que sejamos: grandes consumidor­es –, perdemos essa capacidade de nos tornar sujeitos, passamos a ser só objetos.

Contra isso é preciso formar comunidade­s que tenham como ponto de partida a igualdade. Só conseguind­o poder para todos será possível que o fim do trabalho, como o conhecemos, não seja a divisão total e espacial entre os muito ricos e os 99% restantes, confinados a zonas cada vez mais selvagens nas nossas sociedades.

Para inverter este processo de destruição social e ambiental é preciso redescobri­r a movimentaç­ão coletiva que não se fundamente apenas na situação social em que vivemos, mas se projete naquilo que pretendemo­s que o mundo seja.

A resposta a este regresso aos tempos negros que elegem os pobres, os imigrantes, como inimigos passa por construir comunidade­s de luta que redescubra­m que a Humanidade transcende a nossa existência individual.”

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