Crime no expresso de Alcochete
AComissão Técnica Independente quer criar a ficção da defesa do interesse público contra os interesses privados, mas acaba a apoiar o aeroporto mais caro de todos, com maior dano ambiental e o mais demorado para entrar em funcionamento. A estratégia tem, como cereja no topo do bolo, este paradoxo: quando chegamos ao momento de encaixar o comboio rápido em Alcochete, vemos que há que desviar a alta velocidade do Porto-Lisboa do seu traçado previsto para, através de uma nova ponte no Carregado, levá-lo pelo lado nascente do Tejo até ao aeroporto em Canha (bem longe do Alcochete-outlet), para depois o comboio voltar para Lisboa por mais uma ponte nova (Chelas-Barreiro), somando quase mais 100 quilómetros de puro passeio para se chegar ou sair da capital rumo ao Norte e Centro do país. É obra – e muitos milhões para alguém faturar em obras públicas. Aliás, num país que anda a comemorar a redução da dívida pública e os sacrifícios de uma década pós-troika, esta hipótese só pode fazer parte de um processo de alucinação coletiva.
Pelo caminho, segundo ainda a CTI, é necessário destruir as duas Bases Aéreas (Montijo e Alcochete) para que o aeroporto funcione – e encontrar uma área nova, algures no país, para que haja um Campo de Tiro para a Força Aérea com a dimensão colossal que uma estrutura destas necessita.
Entretanto, o futuro aeroporto do Montijo acabou. Só tinha sobrevivido até agora porque obteve uma primeira Declaração de Impacto Ambiental positiva,em2016,absolutamente tortuosa e polémica. Obviamente, daria muito nas vistas voltar a violar-se a integridade do Instituto de Conservação, Natureza e Florestas nos dias que correm. E assim a validação ambiental caducou esta semana e não será renovada. A ANA tem de escolher outra pista.
Neste cenário de hoje, é por isso mais do que evidente de que a Portela não deve ser demolida, mas sim melhorada. A aviação vai mudar: menos ruído, menor poluição, mais segurança a descolar e aterrar, diferentes tipos de aeronaves para médias distâncias que não vão sequer precisar de aeroportos. Lisboa tem tudo a ganhar com isso. Mas, se queremos diminuir a intensidade de tráfego, então criar um aeroporto complementar a norte da capital dá uma oportunidade de desenvolvimento a três milhões de pessoas no eixo Loures-Oeste-Leiria. Abre também a porta ao maior reforço de Fátima, onde já temos hoje mais de um milhão de turistas. Alivia pressão turística sobre Lisboa. Dá uma oportunidade única ao Centro do país. E tudo isto parece óbvio, mas em Portugal nada é óbvio.
As alternativas racionais que permanecem são Alverca (nem sequer considerada pela CTI) e Santarém. A primeira pode ter problemas ambientais graves por ter a pista em cima do estuário, mas isto é algo que o ICNF pode avaliar previamente. Já Santarém parece não ter obstáculos ecológicos graves – destrói área agrícola, o que, não sendo bom, é menos mau. Além disso, ambas têm financiamento totalmente privado além de não obrigarem a faraónicas obras públicas nos acessos. Santarém gera concorrência à ANA e não tem, afinal, incompatibilidades aéreas irresolúveis com a Base Aérea de Monte Real. A orientação das pistas pode ser alterada, mas a CTI usou este ponto para quase eliminar Santarém. É notável.
Por fim, o principal ativo a salvar: Alcochete tem o maior lençol de água limpa da Península Ibérica. Uma reserva estratégica sem preço num mundo a caminhar dramaticamente para a seca. Sem água não há cidades, agricultura, turismo. É exatamente em cima deste bem insubstituível que vamos construir uma cidade aeroportuária?