Diário de Notícias

Reeleição do “ditador mais cool do mundo” segue à boleia da guerra aos gangues

Bukele era um outsider quando foi eleito presidente em 2019 e, apesar de a Constituiç­ão proibir, achou forma de ser de novo candidato. Eleições são hoje e ninguém aposta contra ele.

- TEXTO SUSANA SALVADOR

Oepíteto de “o ditador mais cool do mundo” foi cunhado pelo próprio Nayib Bukele, o presidente de El Salvador, que tem praticamen­te garantida hoje a reeleição – apesar de a Constituiç­ão proibir dois mandatos consecutiv­os. A sua popularida­de deve-se, principalm­ente, à guerra contra os gangues, que encheu as prisões (incluindo a maior que existe na América Latina) e fez diminuir os homicídios no país, às custas de um estado de exceção que reduziu as liberdades individuai­s. Isso não parece, contudo, ser um problema para os eleitores, com uma sondagem a dar-lhe a vitória com 81,9% dos votos – os adversário­s não vão além dos 4%.

Neto de cristãos palestinia­nos que imigraram no início do século XX para El Salvador – e filho de um importante imã que fundou a primeira mesquita do país (após se converter ao Islão já em adulto) –, o antigo presidente da Câmara de São Salvador tem dito acreditar em Jesus Cristo, mas não na liturgia das religiões. Alegou ainda que a sua mulher, mãe dos dois filhos que nasceram já durante o seu mandato, tem sangue judeu sefardita.

Em 2019, tornou-se o presidente mais jovem da América Latina (tinha então 37 anos), sendo eleito como um outsider e acabando com a hegemonia dos partidos tradiciona­is, que praticamen­te afastou da Assembleia em 2021, quando o Novas Ideias conquistou uma supermaior­ia que lhe deu carta branca.

Apesar de a Constituiç­ão proibir mandatos consecutiv­os, a interpreta­ção do Poder Judicial (que Bukele passou a controlar ao nomear juízes favoráveis) foi que o presidente podia participar nas eleições caso se afastasse do cargo seis meses antes. Foi o que Bukele fez, tendo recebido autorizaçã­o da Assembleia Legislativ­a (que o seu partido controla) para se ausentar.

“Será o povo salvadoren­ho a decidir se quer que haja reeleição”, disse Bukele quando apresentou oficialmen­te a candidatur­a, falando para os apoiantes através de um megafone. “O povo salvadoren­ho decidirá se quer continuar a ter o país mais seguro do continente ou se queremos voltar a ser o país mais inseguro do mundo, como o deixaram os Governos anteriores”, acrescento­u o presidente, que costuma usar casaco de couro e boné e tem 5,8 milhões de seguidores no X (antigo Twitter), onde, por estes dias,se apresenta como “rei filósofo”.

Para assumir a presidênci­a interina durante a sua licença – e uma vez que o vice-presidente Félix Ulloa também teve de se afastar para ser de novo candidato –, Bukele escolheu a sua secretária privada, a contabilis­ta Claudia Rodríguez de Guevara. Esta funcionári­a acompanha-o desde os tempos em que foi autarca de Nuevo Cuscatlán (2012-2015), tendo seguido com ele para a câmara de São Salvador (2015-2018). Quando Bukele foi eleito chefe de Estado, tornou-se gerente financeira da presidênci­a, antes de ser nomead, em março de 2022, sua secretária privada.

Aposta na segurança

A mão de ferro de Bukele no que diz respeito ao crime e aos gangues – como o Mara Salvatruch­a 13 ou o Barrio 18, com quem alguns alegam que fez um pacto –, tem sido o principal argumento do presidente. O número de homicídios passou de 100 por 100 mil habitantes, em 2019, para 2,4 em 2023.

Há um ano, El Salvador abriu a maior prisão da América Latina (que chamou de Centro de Confinamen­to de Terrorismo), com capacidade para 40 mil reclusos – uma fração dos 75 mil que terão sido detidos nos últimos anos, desde a declaração do Estado de Exceção no país: 2% da população adulta está presa.

As organizaçõ­es de Direitos Humanos alegam, contudo, que muitos dos que estão detidos são inocentes e não têm qualquer ligação ao crime organizado – uma reforma judicial permitiu, por exemplo, julgamento­s em massa, com até 900 pessoas julgadas ao mesmo tempo e, dizem os críticos, sem capacidade de se defenderem. “Se perdermos um só deputado, a oposição vai deixar todos os membros dos gangues saírem em liberdade”, alega Bukele num dos seus anúncios de campanha.

Outra das medidas mais famosas de Bukele prende-se com a adoção da Bitcoin como moeda legal. A ideia é lançar, ainda no primeiro semestre deste ano, Obrigações de Tesouro nesta criptomoed­a. O Governo começou a comprar Bitcoins com dinheiros públicos em 2021 e, no final de 2023, o presidente congratula­va-se com a subida do seu valor. Mas as Bitcoins não agradam ao Fundo Monetário Internacio­nal, com quem Bukele está a tentar negociar um empréstimo.

Divisão na oposição

A vitória de Bukele nas eleições de hoje é dada como certa, sendo o grande desafio da oposição continuar a existir. Há sondagens que dizem que o partido Novas Ideias vai conseguir eleger 57 dos 60 lugares no Congresso. Partidos pequenos arriscam desaparece­r, já que as regras dizem que, para continuare­m a existir como tal, têm de ter 50 mil votos ou eleger um deputado.

A expectativ­a é que só dois partidos sobrevivam: a esquerda da Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional (FMLN, ex-guerrilha), a que Bukele chegou a pertencer, e os conservado­res da Aliança Republican­a Nacionalis­ta (Arena). São os partidos tradiciona­is que, até ao outsider Bukele ter sido eleito, se alternavam no poder e cujos Governos foram marcados pelos escândalos de corrupção.

Na prática, El Salvador vai tornar-se num país de partido único, depois de a oposição não ter sido capaz de se unir num único projeto contra Bukele. Para o ano, haverá eleições locais e a reforma feita pelo presidente consolidou os 262 municípios em apenas 44 distritos, que planeia controlar também.

“O povo salvadoren­ho decidirá se quer continuar a ter o país mais seguro do continente ou se queremos voltar a ser o país mais inseguro do mundo”, defendeu Bukele.

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Um mural com o rosto do presidente Bukele na empena de um edifício em São Salvador.

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