Diário de Notícias

Onde eu estava

Nasceu em 1955 e é jornalista profission­al há meio século. Tem obra publicada no âmbito da História Portuguesa dos séculos XIX e XX. É diretor do Arquivo Histórico do Diário de Notícias.

- Depoimento recolhido por Alexandra Tavares-Teles

No dealbar de Fevereiro de 1974 eu vivia todo para a minha paixão de rapaz: a escrita. Estava no meu segundo ano de estágio como repórter numa romântica folha-de-couve chamada República, vespertino do Reviralho para onde entrara em Setembro de 1972, ainda estudante cabuloso, e ganhava três contos de réis por mês, dois contos e setecentos feitos os descontos oficiais (13,5 euros na moeda de hoje). Esta exorbitânc­ia permitia-me viver na Rua Misericórd­ia, mansarda no prédio da farmácia com Dona Luísa por senhoria, almoçar todos os dias na Trindade e chegar ao fim do mês com uns trocos para livros na Sá da Costa e na Barateira e, de vez em quando, para estrear mais um cachimbo na Havaneza.

A Rua da Misericórd­ia era então um mundo, fazendo jus à toponímia anterior: fora de facto Rua d’O Mundo por ali ter estado instalado o jornal republican­o O Mundo, de França Borges, no prédio que mais tarde seria do Diário da Manhã

e, por último, d’A Época. Está lá hoje a Associação 25 de Abril. Entrava bem cedo na Redacção e pela meia manhã já tinha bebido três ou quatro generosos cafés de cafeteira trazidos de alcofa pela Senhora Ermelinda, antiga criada de Norberto Lopes, que vinha do Bairro Alto completar todos os dias a sua reformazin­ha insignific­ante.

Se não almoçava na Trindade, abancava numa das tascas das Escadinhas do Duque. Quando a tertúlia me levava ao Cais do Sodré, não descansava enquanto não apanhava o eléctrico de volta (quinze tostões, bilhete verde) para passar a tarde na Redacção a preparar peças para o dia seguinte. Era o vício! A jornada acabava invariavel­mente no último andar da Livraria Opinião. À noite perdia-me pela cidade, com a minha roda de boémios, e muitas vezes voltava ao Chiado, já a desoras, alegrote de um copito a mais (o tinto corrente andava pelos vinte e cinco tostões o litro, uma sagres custava quinze).

Do varandim da minha mansarda punha-me às vezes a apreciar o murmúrio do preâmbulo do dia, lá pelas cinco da manhã. Ainda havia carroças a descer para a Ribeira, vendedeira­s e fadistas mercando calor, carregador­es e tipógrafos a entrar e a sair de turno. Quase sempre vinha Adriano Parreira, o primeiro africano a dar as notícias no Telejornal, comer a sua sandes de presunto (dois paus, com manteiga) na pastelaria Flor do Mundo, a primeira a abrir na madrugada. E àquela hora, com o fogo da alvorada a espreitar já a nascente, para os lados do castelo, a vida parecia decorrer a um ritmo antigo, benévolo e dolente.

Parecia. Porque a vida real trepidava já, no subsolo daqueles dias de Janeiro de 1974. Spínola, regressado da Guiné, não aceitara a oferta envenenada do Ministério do Ultramar e ponderava ser vice-chefe do Estado-Maior das Forças Armadas (que seria já no dia 17, para logo ser demitido em Março). Viria a saída frustrada das Caldas. E pouco depois Salgueiro Maia chegava ao Largo do Carmo, praticamen­te nas traseiras da nossa Redacção.

Em breve a pacata Rua d’O Mundo e da Misericórd­ia viria a encher-se de carros de combate, fardas, multidões, braços no ar, gritos de ordem. O meu mundo dava uma cambalhota.

“A vida real trepidava já, no subsolo, desde os dias de Janeiro de 1974. Spínola, regressado da Guiné, não aceitara a oferta envenenada do Ministério do Ultramar e ponderava ser vice-chefedoEst­ado-Maior das Forças Armadas (que seria logo no dia 17, para de seguida ser demitido em Março).”

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No Largo do Carmo, a 25 de Abril: à minha direita, o José Freire Antunes; um pouco mais atrás, espreitand­o entre cabeças, o Sttau Monteiro (Luís).
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