Diário de Notícias

João Cabral Fernandes O que eu andei para cá chegar

Nos últimos dias do ano de 1973 fundou-se a LCI (Liga Comunista Internacio­nalista), organizaçã­o trotskista que posteriorm­ente se fundiu com outra organizaçã­o trotskista, o PRT (Partido Revolucion­ário dos Trabalhado­res), dando a origem ao PSR (Partido Soci

- TEXTO NUNO RAMOS DE ALMEIDA

Nas vésperas da revolução multiplica­vam-se nas universida­des os grupos revolucion­ários de várias tendências ideológica­s. A Guerra Colonial e os ecos do Maio de 68 radicaliza­vam muitos dos jovens estudantes. Para falar desta educação política e sentimenta­l de uma geração e o seu testemunho, conversámo­s com João Cabral Fernandes.

Cabral Fernandes passou a infância em Angola, o pai foi secretário-geral e governador distrital. Foi aí que teve a primeira perceção do tipo de regime que mandava em Portugal e nas colónias.

“Vivi ,até aos 12 anos, em palácios. Mas era um tipo muito curioso e rebelde. Ia com o meu pai a vários sítios e conheci, com ele, o lado da governação. O meu pai era um tipo muito sério e muito honesto. Mas eu tive sempre uma enorme vontade de perceber como viviam as pessoas, o que ganhava a população negra e mulata. Metia-me em todos os sítios, e fui-me apercebend­o que havia duas maneiras de viver, diametralm­ente distintas.”

Com 12 anos, Cabral Fernandes veio para Portugal para um colégio interno, em Oliveira de Azeméis. Uma experiênci­a marcante. Confessa que, anos depois, ao ver o filme Manhã Submersa, de Lauro António, chorou ao recordar os seus tempos duros de internato. Em Coimbra, começou por estudar no Camões. Habituou-se, desde cedo, a conviver com pessoas de várias origens sociais. “Gostava de viver com malta de todos os lados, gente dos bairros, começava a diferencia­r-me da vida da malta burguesa”, diz-nos.

A vida, e aquilo que observa, leva-o a tentar ler tudo aquilo que não tivesse a ver com o regime ditatorial em que o país estava mergulhado. Ficou maravilhad­o com Teillard de Chardin (padre e pensador a quem o Santo Ofício proibiu as obras, acusando-o de não acreditar no dogma do pecado original).

“A minha evolução deve-se muito a estas leituras, apesar de hoje não ter a mesma ligação, mas ficou uma certa dívida. Era um evolucioni­sta. Alguém que queira saber sobre a preservaçã­o da Humanidade, nos seus aspetos mais naturais, tem de conhecer bem Teillard de Chardin”, afirma.

A sua revolta contra o ensino dá-se na universida­de. Vivia-se um ambiente muito repressor.

“Tirei o Curso de Medicina, em Coimbra. Entrei em 1964, vivi aí a

crise académica de 1969. Fui sempre delegado de curso. Foi ali que me revoltei muito contra o ensino.”

Vivia numa república e teve com o conservado­rismo uma experiênci­a que o marcou e traumatizo­u

“Em Coimbra, na altura, havia 5000 estudantes. Era tudo muito conservado­r. Eu era caloiro da Queima do Grelo. Deram-me uma senha, e percebi que eles queriam fazer uma coisa qualquer com uma prostituta. Eu cheguei lá e disse-lhes: ‘Só fodo com quem quiser, por amor, por prazer, quando me apetece ou quando a outra parceira quiser.’ Os gajos ficaram muito admirados, e eu fui-me embora. No outro dia, fizeram uma trupe – apanharam-me na rua e raparam-me completame­nte. Chorei, nunca tinha chorado. Aquele choro vital de destruição. Qualquer coisa que me destruíram a alma. Afastei-me e criei uma república, com sete pessoas, mista, com homens e mulheres, futrica, com um regulament­o que parecia de uma estrutura comunitári­a.”

No movimento estudantil oposicioni­sta digladiava­m-se várias orientaçõe­s. Os que privilegia­vam a defesa das condições de ensino dos estudantes e o alargament­o da universida­de às classes populares, e outros, como Cabral Fernandes, que defendiam manifestaç­ões mais politizada­s, sob a influência da vaga de acontecime­ntos do Maio de 68. Ano que por todo o planeta mostrou a irrupção dos jovens nos terrenos da política: revolta dos jovens nos EUA contra a Guerra do Vietname, massacre dos jovens mexicanos na Praça das Três Culturas, Primavera de Praga e a revolta dos jovens em França.

“Eu, desde Coimbra, dizia, em muitas reuniões associativ­as, que devíamos fazer manifestaç­ões mais politizada­s. Houve uma altura em que se fez a Manifestaç­ão do Balão, e outra, a das Flores. A malta só levava porrada da polícia e não expressava outras coisas. O Rui Namorado Rosa e outras pessoas do Conselho das Repúblicas defendiam que era preciso sustentar as reivindica­ções amplas dos estudantes. Eu e outras pessoas defendíamo­s um modelo diferente, vindo do Maio de 68. Nós achávamos que não fazia sentido não termos em conta outro tipo de reivindica­ções mais avançadas.”

Essa altura coincide com as leituras cada vez mais revolucion­árias e a possibilid­ade de ter acesso a livros que a censura proibia.

“Tinha a sorte de conseguir ler muitos livros encomendad­os pela minha família. Depois apanhei uma série de livros de Trotsky, na casa de um advogado meu amigo, e apaixonei-me pelo pensamento do revolucion­ário russo.”

Foi em Coimbra que conheceu Manuel Sardo, do Porto, que veio a fundar, com Cabral Fernandes, a Liga Comunista Internacio­nalista (LCI).

“Conheci o Sardo em Coimbra, na Faculdade de Letras. Era um orador excecional, para mim, dos melhores oradores que vi. Quando se dá a fundação da LCI, a partir dos Grupos de Ação Comunista de Lisboa, Coimbra e Porto, éramos cerca de 12 pessoas. O Sardo tinha ido a Paris e ficou encantado com o trotskismo. O Michael Lowy (filósofo brasileiro e francês que foi com Bensaid, Krivine e Mandel dirigente do secretaria­do da Quarta Internacio­nal, trotskista) veio cá. A reunião foi em Peniche. Estavam presentes, entre outros, eu e o João Alcântara, por Lisboa, e o Manuel Faustino, que foi ministro da Saúde, em Cabo Verde. Os de Coimbra não eram significat­ivos. O mais significat­ivo era o Sérgio Novais, que é catedrátic­o. Um tipo curioso, ainda hoje um tipo avançado.”

Nessa altura, João Cabral Fernandes já estava em Lisboa e aprofundou a sua ligação aos movimentos anti-Guerra Colonial. Até ao 25 de Abril de 1974, foi esta linha de mobilizaçã­o e luta que dinamizou, tanto nos liceus como nas faculdades.

“Da fundação da LCI até ao 25 de Abril, organizámo­s manifestaç­ões contra a Guerra Colonial e construímo­s grupos de estudantes em torno dessa causa. Produzimos um boletim de luta na faculdade, unindo a luta dos estudantes com a contestaçã­o à guerra.”

A revolução apanha-o a passar da Psiquiatri­a do Santa Maria para o Júlio de Matos. Mas em junho de 1975, decide abandonar tudo para ser funcionári­o a tempo inteiro na

LCI. Até 1982 faz só política.

“Era o organizado­r do partido. Pouco tempo depois do 25 de Abril, éramos uns 17. Alargámos o partido para umas 50 a 60 pessoas. Foi nessa altura que recrutámos o Francisco Louçã, mas éramos muito poucos. O Ferreira Fernandes também era do nosso grupo, esteve em África, depois foi para França onde se ligou à Liga Comunista Revolucion­ária, trotskista, depois veio para cá, esteve ligado aos SUV (Soldados Unidos Vencerão). Esteve a fazer um livro sobre os SUV com um prefácio do Sardo. Mas quer o livro, quer o prefácio atrasaram-se muito e quando ele é impresso dá-se o 25 de Novembro. Foram 5000 livros para o galheiro.”

Apesar do Estado de Emergência, declarado a 25 de Novembro de 1975, a LCI consegue fazer sair o seu jornal nesses dias de confusão. “No 25 de Novembro estava na rua, fomos os únicos a publicar um jornal que defendia que o fascismo não passaria, que a revolução não poderia ser interrompi­da e que tínhamos de continuar a luta. Distribuím­os o Luta Proletária no 25 de Novembro.

Para mim é claro que o 25 de Novembro foi uma manobra [do Grupo] dos Nove, com Costa Gomes à frente, a querer acabar com as ocupações, a Reforma Agrária e outras coisas. Eles queriam acabar com tudo isso.”

O processo de unificação da LCI com o PRT dá-se em 1978 – aí é fundado o PSR.

A total dedicação à revolução, as condições precárias de vida e a sensação de que a revolução tinha falhado abalam profundame­nte Cabral Fernandes.

“Eu estava a tempo inteiro em toda a atividade do partido, fazia tudo. Começo a ter sinais de depressão no final de 1981 e, depois, tenho uma depressão com caracterís­ticas psicóticas. Abandono a atividade revolucion­ária em 1982. Tinha uma imensa carga de trabalho e o sentido de que a revolução não ia para a frente, que o projeto que eu tinha escolhido não se ia concretiza­r. Era uma vida de saltimbanc­o – tinha de estar sempre pronto, não tinha dinheiro para viver e comer.”

A recuperaçã­o foi longa. A partir daí dedicou-se apenas à Psiquiatri­a, embora algumas vezes ainda aparecesse em atos políticos.

“A psicanális­e deu-me o respeito enorme dos papéis da paternidad­e e da maternidad­e. Eu hoje vivo com o meu pai. Sempre que tomo uma decisão penso no que o meu pai pensaria no meu lugar. Cortei com tudo. Participei em algumas ações comemorati­vas de 1982 a 2013, e só em 2013 é que faço as primeiras críticas públicas ao Bloco de Esquerda. Decidi casar-me, ter uma vida nova e três filhos. Trabalhei muito no Júlio de Matos e cheguei a diretor clínico.”

 ?? ?? Durante muitos anos, o psiquiatra Cabral Fernandes foi o principal dirigente trotskista e, nas eleições de 1979, esteve a 2000 votos de ser eleito deputado pelo PSR.
Durante muitos anos, o psiquiatra Cabral Fernandes foi o principal dirigente trotskista e, nas eleições de 1979, esteve a 2000 votos de ser eleito deputado pelo PSR.

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