Ana Isabel Xavier “A Rússia tornou-se também o seguro de vida da NATO”
Cocoordenadora, com José de Matos Correia, de A NATO e as Relações Transatlânticas: de Madrid a Vílnius, a professora e investigadora universitária Ana Isabel Xavier fala ao DN sobre os desafios e prioridades da Aliança Atlântica aos 75 anos – do regresso
Em 2019 o presidente Emmanuel Macron considerava a NATO “em morte cerebral”. Agora, a celebrar 75 anos e perante a invasão russa da Ucrânia e a guerra que marcou estes dois últimos anos, a Aliança Atlântica mostrou estar mais viva do que nunca?
Mais viva do que nunca, não só com capacidade para reinventar a sua missão fundadora de aliança de defesa coletiva de valores partilhados, mas também com capacidade de expansão contra qualquer tipo de agressão ou ameaça coberta pelo artigo 5.º, de espetro convencional e não-convencional. A NATO de 2024 é um ator de segurança e defesa simultaneamente comprometido com dissuasão e defesa, prevenção e gestão de crises e segurança cooperativa. Está claramente fit for 75,alive and kicking! Quando, há 75 anos, Lord Ismay, o primeiro secretário-geral da NATO, referia que a aliança tinha sido criada para“manter a União Soviética fora, os americanos dentro e os alemães em baixo”, estaria decerto longe de imaginar o cenário geopolítico e o am- biente geoestratégico que vivemos em 2024.
Este conflito na Ucrânia veio mostrar que a Rússia continua a ser a maior ameaça para os países da NATO?
A ameaça mais significativa e direta à segurança dos Aliados eà paz e estabilidade do espaço euro-atlântico. É assim que o conceito estratégico de defesa NATO de Madrid, de junho de 2022, reconhece a Federação Russa, numa oposição clara ao enunciado de 2010, que a assumia como um verdadeiro parceiro estratégico. Mas a Rússia tornou-se também o seguro de vida da NATO. Desde 24 de fevereiro de 2022, a NATO reforçou a presença nos aliados que fazem fronteira com a Federação Russa, adotou o Acelerador de Inovação em Defesa para o Atlântico Norte, o Fundo de Inovação da NATO e, até maio, está em curso o exercício SteadFast Defender 2024, o maior da NATO desde a Guerra Fria. O conflito na Ucrânia veio revelar uma grande unidade transatlântica, mas dois anos depois do início da guerra essa união no apoio a Kiev parece estar a abrandar. É inevitável?
É inevitável o desgaste das opiniões públicas e o recentrar das prioridades nacionais, ainda mais com eleições nos EUA, em vários Estados-membros da UE, no Reino Unido e para o Parlamento Europeu. Essas circunstâncias já estão a ter impacto nos compromissos financeiros e na assistência militar dos aliados para manter o apoio à Ucrânia de forma incondicional e pelo tempo que for necessário.
Esta ameaça às portas da NATO já levou a Finlândia e agora a Suécia (depois da luz verde da Turquia) a aderir. Até onde pode ir um alargamento da Aliança Atlântica? E onde deixa de ser aceitável para a Rússia?
Para Vladimir Putin, a existência da NATO é, por si só, inaceitável, quanto mais o alargamento para Estados vizinhos às suas fronteiras como a Ucrânia, Geórgia e Moldova, três países que até 24 de fevereiro de 2022 eram considerados “tampão”, quern aNATO, quer na União Europeia. Oqueéi ró nicoé que antes dessa data nem a Finlândia, nem a Suécia apresentavam qualquer indicação depo derem vira querer a der irà NATO. Mas aderem como consequência direta do 24 de fevereiro e não apesar disso. Quanto a alargamentos futuros, há claramente maior ponderação e racionalidade. Os aliados não querem provocar a Rússia e a linha vermelha está traçada: a Ucrânia poderá aderir quando a guerra terminar. Esta declaração deixa muitas equações em aberto, mas, até lá, funcionará um programa de assistência plurianual para garantira totalin ter operacionalidade entre as Forças Armadas da Ucrânia e aNATO e a aproximação política via Conselho NATO-Ucrânia. Apesar do novo empenho transatlântico, a meta dos 2% do PIB continua longe de cumprir pela maioria dos Estados-membros - incluindo Portugal, mas também a própria Alemanha. Apesar da pressão, a resistência vai continuar?
A meta dos 2% do PIB não é um fim em si mesmo, mas um patamar mínimo. É uma maratona, não uma corrida de 100 metros, cujo debate tem sido muito desvirtuado. Mais do que olharmos para cumpridores e não-cumpridores, é importante termos consciência de que investimento em Defesa deve significar investimento em capacidades, aquisição de equipamentos e reforço da investigação e tecnologia. Mas de que nos servirá ter umas Forças Armadas capacitadas em matéria de investimento e meios operacionais, se não conseguimos atrair, recrutar, e, sobretudo, manter e desenvolver carreiras profissionais sólidas em todos os níveis hierárquicos? A meta dos 2%, por si só, não garante a capacidade, os meios e a prontidão das Forças Armadas para o cumprimento das suas missões.
A NATO colocou a China entre as suas prioridades estratégicas para a próxima década. As ambições de Pequim são o grande desafio para o futuro?
Já são um grande desafio para o presente, em termos comerciais e tecnológicos, mas também geopolíticos. Não é por acaso que no Conceito Estratégico de Madrid, a China é, pela primeira vez, referenciada como um desafio sistémico para a NATO e para as democracias liberais ocidentais no seu todo, pelo seu crescente poder militar, presença e influência global e liderança científica e tecnológica.
Um eventual regresso de Donald Trump à presidência dos EUA é um cenário muito provável. Isso
poderia significar a saída dos EUA da NATO?
Segundo a Lei de Autorização de Defesa Nacional para o Ano Fiscal de 2024, promulgada a 22 de dezembro de 2023, nenhum presidente dos EUA pode retirar-se unilateralmente da NATO sem a aprovação de uma supermaioria de dois terços no Senado ou de um ato do Congresso. No entanto, um regresso de Trump provocará inevitavelmente um novo terramoto ao multilateralismo. Na NATO, poderá significar o retraimento definitivo da Europa – leia-se Ucrânia – e a intransigência na partilha do fardo.
O mandato de Jens Stoltenberg como secretário-geral da NATO já foi prolongado, mas este ano deverá ser conhecido o seu sucessor ou sucessora. Para já fala-se de vários os nomes – inclusive a primeira mulher. Portugal, como país fundador, nunca teve um secretário-geral. Ainda nãoéomomentocer to? Portugal tem, e terá sempre, um ativo estratégico na NATO que é crucial e queéaBa sedas L ages. Mas este ativo não é, nem nunca foi, suficiente para projet ar Portugal como umfrontrunnerp ar alugares de destaque na NATO. Não somos especialmente liderantes no destacamento de forças ou capacidades. Somos do flanco sul, quando a priori da deéo flanco leste. E temos um secretário-geral da ONU português ainda em funções. Temos também de perceber que a indigitaçãodo secretário-geral da NATO( que sempre foi europeu) e de um Comandante Supremo Aliado da Europa (que sempre foi ame rica no)éfrut ode um processo muito politizado, condicionado pelo timing geopolítico e com validação obrigatória por parte dos EUA. Este ano a corrida complica-se, porque pode ser condicionada
pela dança das cadeiras de topo nas instituições da União Europeia. Seja como for, o novo prolongamento do mandato deJensStoltenb erg foi revelador de que não há consenso nos Aliados e que a escolha deve ser muito ponderada para não acicatar as relações com a Rússia e com a China, e manter a Europa e a América do Norte unidas.
Faz parte dos coordenadores do livro A NATO e as Relações Transatlânticas: de Madrid
a Vílnius – qual foi o critério para a escolha dos 25 testemunhos que este inclui?
Este livro é uma parceria entre a Comissão Portuguesa do Atlântico e a editora da Universidade Lusíada. O José Matos Correia e eu, na qualidade de editores, quisemos convidar personalidades que pensam a Segurança e Defesa, mas com abordagens complementares, civis e militares, académicos e investigadores de diferentes Universidades e Centros de Investigação. Tal como a NATO, a abordagem do livro pretendeu ser holística, a 360 graus. O livro tem o mérito de nos dar pistas de reflexão para lá de Madrid e de Vílnius, para lá do horizonte temporal de 2022 e 2023, para lá do debate dos 2% do PIB, e para lá da aparente tensão geopolítica entre o flanco sul e o flanco leste.