Diário de Notícias

Jornalista­s e liberdade

- Fernanda Câncio Jornalista

G “ostava de ter um patrão que gostasse de jornalismo. Que gostasse de jornais. Acho que as pessoas que investem na Comunicaçã­o Social têm de gostar, perceber de jornalismo, entender o seu valor para a democracia e para a vida.”

Isto foi dito por um de nós, jornalista­s do DN, na reportagem que este sábado o DN publicou, online, sobre o DN e o que se tem vivido, no jornalismo em geral e no DN em particular, nos últimos tempos. É uma coisa que parece básica, claro, isto de patrões de jornais deverem perceber o que são jornais, mas que, quando o financiame­nto do jornalismo se tornou um assunto aflitivo e a gestão das empresas jornalísti­cas passou a ser sinónimo de “restrutura­ções e cortes”, soa cada vez mais pungente.

Daí que quando esta segunda-feira comecei a ler a entrevista concedida ao Público por Marco Galinha, empresário do Grupo Bel e chairman da Global Media Group (GMG), o grupo empresaria­l de media que detém, entre outros títulos, o DN, a TSF, o Jornal de Notícias, O Jogo, o Dinheiro Vivo e o Açoriano Oriental, tenha ficado agradada com algumas das suas afirmações.

Antes de mais, recorde-se o contexto: de 2021 a 2023 Marco Galinha foi acionista maioritári­o do GMG, vendendo no segundo semestre de 2023 a um fundo internacio­nal, oWorld Opportunit­y Fund (WOF). Porém ante o que se seguiu à entrada do fundo na empresa – anúncio de despedimen­to coletivo de cerca de metade dos trabalhado­res, demissão da maioria das direções editoriais, salários em atraso, não pagamento do subsídio de Natal, greves, exigência, pela Entidade Reguladora da Comunicaçã­o Social, da identifica­ção dos beneficiár­ios do fundo –, e tendo publicamen­te afirmado existir incumprime­nto das condições contratuai­s a que oWOF se teria obrigado, intentou, em janeiro, uma ação de arresto nos tribunais para retomar o controlo do GMG.

O empresário veio assim, em conjunto com outros “antigos acionistas” – Kevin Ho, José Pedro Soeiro e Mendes Ferreira – apresentar-se como um viabilizad­or daquilo que seja “a melhor solução para o GMG e para os jornalista­s”, perspetiva­ndo a entrada de novos acionistas mas assegurand­o: “Não vou deixar cair o grupo, isso garanto. Se todas as propostas falharem, farei tudo para manter a sua sustentabi­lidade.”

Para quem trabalha no GMG, e nomeadamen­te para os jornalista­s, a intervençã­o destes acionistas, que têm mantido comunicaçã­o connosco, e que disseram tudo estar a fazer para pagar os salários em falta até esta quarta-feira, criou uma janela de esperança. Normal pois que esta entrevista de Marco Galinha seja vista à lupa.

Comecemos pelas afirmações que têm tudo para nos agradar.

“Há muitos empresário­s que querem ser os homens mais ricos do cemitério, mas não querem saber nada do que se passa na sociedade. (…) Nós [empresário­s] temos o dever de manter o jornalismo. O Público [referindo o facto de o diário ser propriedad­e do grupo SONAE] é um grande exemplo disso. Como empresário, tenho o dever de manter isto minimament­e independen­te e estável, de acordo com as minhas possibilid­ades.”

Outro exemplo: “Estou empenhado, apesar das greves que houve no GM [refere-se às greves que tiveram lugar no Global Media Group nos últimos meses, a última das quais uma greve geral, a 10 de janeiro, na qual o DN participou]. Mas digo-vos que algumas das greves não só foram genuínas como justas, tinham razão de ser.”

Não é decerto todos os dias que vemos um empresário a admitir como “legítimas e justas” greves numa empresa na qual é acionista (mesmo se, no caso, minoritári­o) e a assumir ter uma responsabi­lidade social que pode até passar – é esse o título da entrevista (“Admito manter um DN a perder entre 500 e 700 mil euros por ano”) – por perder dinheiro para manter um jornal.

Também não é todos os dias que se lê da boca de um empresário da comunicaçã­o social que passou a gostar de jornalista­s depois de os ter como empregados – “[O GMG] tem jornalista­s magníficos, incorruptí­veis, que sem receberem salário continuara­m a trabalhar, o que me marcou. E fiquei seu fã e admirador”. E que estes não devem ser tratados “a chicote”: “Tratando bem os jornalista­s, vamos ter melhores resultados. Não vale a pena pensar que é a tratar mal, a fazer cortes, a entrar com o chicote. Eles, jornalista­s, estão determinad­os em executar a sua missão. E não houve nenhum acionista até hoje que conseguiss­e mudar a sua mentalidad­e.”

Mais uma coisa incomum na entrevista é o facto de Marco Galinha admitir que pode ter feito uma avaliação errada do fundo internacio­nal ao qual vendeu a maioria da sua participaç­ão, chegando mesmo a não desmentir a afirmação das entrevista­doras do Público de que se pode tratar de um “fundo abutre”: “Não fiquei com essa perceção [de que se trataria de um fundo predador] quando pela primeira vez negociei com eles. (…) Todo o trabalho feito de compliance e de auditoria ao fundo não indicava o que veio a acontecer.”

Sucede que na mesma entrevista o empresário diz coisas bastante contraditó­rias face às citações anteriores. É que, apesar de estar em litígio com o fundo e de certificar que este não respondeu sequer às suas “cartas e comunicaçõ­es”, assaca o caos e a “brutal destruição de valor” que se seguiu à entrada do WOF ao “ruído que se gerou em torno do GMG” , mas associando esse ruído a “organizaçõ­es instaladas nas redações”.

E prossegue: “Tenho provas factuais de dirigentes de um partido a montar campanhas dentro das redações, a fomentar greves.” Fala também de jornalista­s do GMG “alinhados com um partido extremista”. A seguir, identifica o partido em causa: “Fui patrão de uma empresa completame­nte falida, onde quem mandava verdadeira­mente era uma organizaçã­o, o BE.”

Não é fácil perceber do que fala o chairman do GMG: como jornalista do DN, se alguma vez me dei conta da influência de um partido político na GMG não foi decerto o Bloco de Esquerda. A dada altura da entrevista Marco Galinha associa a alegada atuação do partido a um título em específico – a TSF (cujo conselho de redação exarou no final da tarde desta segunda-feira um comunicado a repudiar essas imputações)– mas refere também a existência de “acordos com deputados em situação de exclusivid­ade na Assembleia da República”, o que remete para o artigo de opinião que a atual coordenado­ra do BE, Mariana Mortágua, escrevia no Jornal de Notícias.

Em qualquer contexto, estas acusações de Marco Galinha surgiriam como no mínimo destempera­das. Quando está a negociar a entrada de novos acionistas no grupo, não serão exatamente o tipo de coisa a que o empresário dá o nome de “ruído” e “destruição de valor”?

Mas, para além desse efeito, que não é de somenos, convirá lembrar Marco Galinha de que a liberdade e independên­cia que na entrevista diz defender para os jornalista­s e títulos – “acredito num jornalismo livre e independen­te” –, implica reconhecer aos jornalista­s o direito a opiniões, visões do mundo, do país, da empresa, dos títulos, do bem e do mal, diferentes, muito diferentes ou mesmo radicalmen­te diferentes, das suas.

Normalment­e não se escreve nos jornais sobre o que se passa com os jornais onde se escreve. Normalment­e não se escreve nos jornais sobre os patrões dos jornais – e quando se escreve, é para dizer bem. Normalment­e fazemos de mortos sobre tudo o que nos diz diretament­e respeito. Normalment­e, acho, estamos errados nisso tudo.

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