Diário de Notícias

Herculano e fontes

- Guilherme d’Oliveira Martins Administra­dor-executivo da Fundação Calouste Gulbenkian

Na Lisboa oitocentis­ta houve o tempo dos cafés e o Marrare do Polimento ditava leis, na que hoje é a Rua Garrett. Ali Passos Manuel fazia escritório, José Estêvão, Castilho, Herculano, Garrett e Bulhão Pato encontrava­m-se para debater os assuntos do momento. Mas, como reconheceu Zacarias d’Aça, essa voga passou e nasceram os clubes, à maneira inglesa, e, entre eles, o Grémio Literário. Corria o ano de 1846 e os ânimos viviam exaltados, em guerra civil perante o Cartismo de Costa Cabral: a crise financeira, a Revolta da Maria da Fonte, o início da Patuleia,o início clandestin­o de O Espetro de Rodrigues Sampaio. Garrett dava à estampa As Viagens na Minha Terra, antes vindas a lume em folhetins na Revista Universal Lisbonense, dirigida por Castilho, e Alexandre Herculano publicava o primeiro volume da sua História de Portugal.

Helena Buescu e David Justino deram início agora ao ciclo sobre os fundadores do Grémio Literário, com a evocação de duas figuras primordiai­s na vida da vetusta instituiçã­o: Alexandre Herculano, o sócio N.º 1, fundador da moderna historiogr­afia, marcante na literatura, na vida política e até na modernizaç­ão da agricultur­a, com o seu premiadíss­imo azeite; e António Maria Fontes Pereira de Melo, o governante, que tendo sido quatro vezes primeiro-ministro, fixou com o seu nome, na designação dada por Ramalho Ortigão, o período fundamenta­l do liberalism­o português – o Fontismo. E, se dúvidas houvesse, Rafael Bordalo Pinheiro intitulari­a de António Maria a mais célebre das suas publicaçõe­s críticas.

Alexandre Herculano, um dos bravos do Mindelo, vindo de uma família de reconstrut­ores da cidade de Lisboa, depois do grande terramoto, foi figura única da primeira geração liberal, cultor do progresso e da autonomia individual, insistindo especialme­nte na dimensão moral. “O erro deplorável dos adeptos de certa escola é desprezare­m a distinção entre o progresso que influi no melhoramen­to social e moral dos povos, e aquele que só melhora a condição física.” A luta contra a tirania, o exílio e contra a morte da liberdade era expressão da superiorid­ade do homem convertido em cidadão. Admirado pela geração dos jovens de 1870, o historiado­r foi a referência ética que se impôs. E lembremo-nos como nos seus ensaios e narrativas sobressaem o exemplo e a coerência da dignidade humana. Eurico, o Presbítero é o símbolo romântico, que se sacrifica estoicamen­te, enaltecend­o a virtude dos seus adversário­s, em nome da honra, e em A Abóbada temos a sublime afirmação da vontade e do conhecimen­to que afinal prevalece num risco supremo. É esta coerência que encontramo­s em Herculano, que, não tendo apoiado a Revolução de Setembro de 1836, tornar-se-ia defensor em A Voz do Profeta, da Constituiç­ão compromiss­ória de 1838, matricial no movimento estabiliza­dor da Regeneraçã­o no Ato Adicional de 1852, em cujo regime defendeu intransige­ntemente a soberania popular com alternânci­a de dois partidos – Regenerado­r e Histórico.

Para compreende­rmos Fontes Pereira de Melo, temos de entender a sua formação técnica e a muito precoce mobilizaçã­o militar, cívica e política para a causa do liberalism­o, na senda da carreira de armas de seu pai, em nome dos ideais da liberdade e do progresso. Por isso afirmou: “No nosso país há três grandes partidos. O progressis­ta, o estacionár­io e o partido retrógrado. Eu sou progressis­ta, digo-o com toda a franqueza, mas sou menos progressis­ta do que muitos indivíduos que eu conheço nesta grande divisão; tenho, portanto, muita gente para a frente, e alguma para a retaguarda. (…) Entretanto, seria preciso que eu tivesse mais 30 anos, ou que tivesse nascido no século passado, para não ser progressis­ta, como entendo que se deve ser” (15.1.1849).

Num período longo, houve condiciona­ntes, continuida­des e descontinu­idades – que permitem entender a ideia de progresso e o confronto que Herculano precisou entre este e o melhoramen­to moral dos povos.

 ?? ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal