Lisboa Capital República Popular
Assinarmos os jornais na internet é essencial para a sua sobrevivência, constituindo quase um dever cívico, mesmo para pessoas como nós, que não dispensam a leitura em papel.”
Aminha avidez pelos jornais começou cedo. Recordo, na minha infância, em férias no Algarve, esperar até ao fim da tarde, às vezes já pela noite, pelo Diário de Notícias. E por que não nos chegava, ali a Ferragudo, mais cedo o jornal? “Porque vão primeiro distribuí-lo à Mexilhoeira da Carregação”, explicou-me a minha tia.
Concebi nesse momento um ódio profundo à Mexilhoeira da Carregação, que me atrasava a chegada dos jornais, e a todos os seus habitantes. Minha tia deu-me então uma lição de solidariedade e de negação do egoísmo: “Imagina que há um menino na Mexilhoeira da Carregação tão ansioso pelo jornal como tu. Por que hás de passar-lhe à frente?”
Esse hipotético menino da Mexilhoeira da Carregação fez-me entender o que significava viver com os outros e com eles partilhar os bens e os gozos da terra.
Na minha adolescência, em Chaves, os jornais da manhã de Lisboa só chegavam ao fim da tarde e os da tarde na manhã seguinte. A quarta-feira de manhã era um dia importante, porque chegava no Diário de Lisboa do dia anterior o suplemento Juvenil, em que eu às vezes colaborava. E às quintas-feiras era o excelente suplemento literário do Comércio do Porto de manhã e o não-menos excelente, ainda que de orientação distinta, suplemento literário do Diário de Notícias à tarde.
Os títulos dos jornais da tarde permitiam, nesse tempo, um grito subversivo dos ardinas ao anunciá-los em voz alta: LISBOA,CAPITAL,REPÚBLICA, POPULAR...
E foi no jornal República que eu passei grande parte do dia 25 de Abril de 1974.
Mais tarde, já adulto e secretário de embaixada, colocado em Estrasburgo, eu ia aguardar os jornais portugueses, que ali chegavam semanalmente, de comboio, dirigidos à mercearia portuguesa do Sr. Cardoso. Impaciente, eu ia pela noite à própria casa do Sr. Cardoso, onde esperava, na companhia da sua família, que ele chegasse da estação com os preciosos semanários, vindos da pátria, enrolados em papel velho, para assim os poder adquirir antes mesmo que abrisse a mercearia. Não havia jornais na internet em 1991.
Mas havia, em Paris, na Étoile, um quiosque onde eram vendidos jornais portugueses: e ali se concentravam, todos os sábados, muitos compatriotas trabalhadores emigrantes, numa aglomeração notável. É preciso dizer que ali o jornal mais vendido era A Bola...
Hoje, tenho assinaturas digitais do Público, Expresso e Diário de Notícias, mas isso não me impede de sair logo pela manhã, com um longo sobretudo a esconder o pijama, para comprar os jornais em papel. Ler os jornais ao pequeno-almoço é uma cerimónia que não dispenso.
Todos sabemos que é na internet que, hoje, a maioria das pessoas procura e recebe a informação. Assinarmos os jornais na internet é essencial para a sua sobrevivência, constituindo quase um dever cívico, mesmo para pessoas como nós, que não dispensam a leitura em papel. Mas ler os artigos longamente e com tempo para reflectir permite-nos uma leitura lenta e atenta, que é alimento para a nossa razão crítica,“food for thought”, como se costuma agora dizer.
Pensar não é compatível com a leitura rápida e instantânea que a comunicação digital impõe. A cerimónia da leitura quotidiana dos jornais é o momento de pensarmos o mundo que nos cerca (e, quase sempre, ficar mal disposto com esse mundo). Mas, mesmo assim, não há melhor forma de começar o dia.
Defender os jornais (mesmo os tabloides de que não gostamos...) é defender o pensamento e a opinião livres. É no espaço público, preservado para o pensamento crítico e para o debate sem censuras, que iremos defender a nossa ameaçada democracia.
Vivam os jornais!