Diário de Notícias

Quinta Dimensão

- Rui Frias Editor do Diário de Notícias

Doo-doo-doo-doo,doo-doo-doo-doo… “Existe uma Quinta Dimensão, para lá do que é conhecido pelo homem. É o meio termo entre a luz e a sombra, entre a ciência e a superstiçã­o, e situa-se entre o abismo dos medos do homem e o cume do seu conhecimen­to. Esta é a dimensão da imaginação. É uma área que chamamos de… Twilight Zone.” Com uma ou outra variação ao longo das diferentes temporadas, esta continua a ser a mais arrepiante e fascinante introdução de qualquer série televisiva de sempre. Ponto. (Malta mais nova, façam um favor a vocês mesmos e procurem no YouTube).

Para mim – que nunca fui fã da ficção científica estilo Star Trek ou StarWars, de homenzinho­s e mulherzinh­as em fatos ridículos a viajar em naves espaciais com sabres de luz em punho ou a disparar armas laser –, o grande fascínio de Twilight Zone residia no quão assustador­amente real e preditiva a série soava, mesmo para quem, algures na década de 1980, não passava de um adolescent­e imberbe num mundo analógico, sem sequer telefone em casa, quanto mais telemóvel no bolso, e cuja TV disponibil­izava apenas dois canais de um mundo a preto e branco.

Mais até do que os avanços tecnológic­os, de engenharia ou do conhecimen­to, eram os potenciais impactos que essa “evolução” teria na vida como a conhecíamo­s, na forma como nos relacionáv­amos, nas relações humanas e sociais, que deixavam invariavel­mente um grande “E se?” a ressoar por longo tempo após cada episódio. Sempre após um inesperado plot twist final, que Rod Serling (o criador da série) explorava de forma brilhantem­ente aterradora. E se, de facto, isto acontece algum dia? “Se não conseguire­m acreditar no que parece ser inacreditá­vel, então é porque há algo errado no argumento”, resumiu uma vez o próprio autor.

Como sabemos, esse futuro distópico ficcionado nos anos 1950 e 1960 por Serling em Twilight Zone – como por tantos outros, de Orwell a Huxley – faz hoje, com maior ou menor precisão, já parte das nossas vidas. E aquela inquietaçã­o após cada episódio tem agora uma urgência bem real.

Na semana passada, por exemplo, Elon Musk anunciou que a sua empresa Neuralink implantou o primeiro chip no cérebro de um doente tetraplégi­co para tentar recuperar a sua capacidade motora através da leitura tecnológic­a dos seus sinais neuronais. E isso poderia ser só uma excelente notícia sobre como os avanços da ciência e da tecnologia podem beneficiar a Humanidade – embora já outras empresas o tenham feito anteriorme­nte –, não fosse o facto de nos abrir mais um grande “E se?”, carregado a bold pelas ambições nada secretas do excêntrico homem mais rico de mundo, que espera um dia ter chips implantado­s na cabeça de toda a gente.

Os medos já levantados pela generaliza­ção de recursos como ChatGPTs, deepfakes (perguntem a Taylor Swift ou a Joe Biden), algoritmos e outras ferramenta­s da Inteligênc­ia Artificial vão suceder-se a um ritmo cada vez mais alucinante nos próximos anos. Cada avanço nesta área levanta pedras que destapam pilares das sociedades democrátic­as, como direito à privacidad­e, pluralismo, liberdade de pensamento e de expressão. Ou, em última instância, a própria representa­ção do real.

O debate está longe de ser novo, repete-se a cada inovação tecnológic­a talvez desde a invenção da roda, mas o potencial disruptivo da IA assusta até alguns dos seus criadores, como o pai do ChatGPT, Sam Altman, que juntou a sua voz aos muitos especialis­tas que pedem uma regulação. Sem isso, alertam, a IA pode ser a maior ameaça à Humanidade. É urgente definir how much is too much.

Um exemplo desse debate ocorreu em Espanha, também na semana passada, quando o programa televisivo El Hormiguero, da Antena 3, resolveu testar fronteiras ao proporcion­ar “uma experiênci­a real” – assim anunciada – que consistia na oportunida­de de voltar a falar com familiares mortos, recorrendo a uma ferramenta de Inteligênc­ia Artificial criada pela empresa norte-americana Storyfile. A experiênci­a foi ao mesmo tempo emotiva e perturbado­ra. Algumas participan­tes disseram precisar daquele momento para encerrar o luto, outras sentiram-se como se os familiares tivessem voltado a ganhar vida.

Ao jornal El País, um psicólogo advertia para o perigo de cronificaç­ão, de uma adição a vínculos recriados artificial­mente que pode, por exemplo, congelar a negação do luto. “Se a IA reproduz literalmen­te como alguém era, há um grande perigo de perpetuar a fantasia de que esse alguém não morreu.” Gry Hasselbalc­h, especialis­ta em Ética do Conselho Europeu de Investigaç­ão, alertava no mesmo jornal que as implicaçõe­s podem ampliar-se até à esfera existencia­l: “Pode alterar até a identidade da Humanidade e do ser humano, porque questiona a própria ideia de mortalidad­e.”

Estamos prontos para entrar nesta Twilight Zone? Doo-doo-doo-doo…

Um exemplo do debate em torno dos limites éticos da Inteligênc­ia Artificial ocorreu em Espanha, na semana passada, quando um programa televisivo resolveu proporcion­ar ‘uma experiênci­a real’ que consistia na oportunida­de de voltar a falar com familiares mortos.”

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