Diário de Notícias

Negros no Parlamento. “A ideia é estar na construção de um país mais justo”

- TEXTO VÍTOR MOITA CORDEIRO

O DN ouviu deputados e candidatos, entre a esquerda e a direita, que conhecem as realidades das minorias. Helder Amaral, Gabriel Mithá Ribeiro, Seyne Torres e Anabela Rodrigues têm várias ideias sobre racismo, história e futuro. Em comum, têm a vontade de dar voz a quem não a tem.

É “importante a representa­tividade, nem que seja para os jovens, como os de São Brás [Freguesia na Amadora, na periferia de Lisboa] e outros, olharem e pensarem: ‘Eu posso chegar aí também e vou fazer o esforço para tal’.”, disse ao DN a candidata a deputada pelo PCP Seyne Torres. Entre todos os atuais deputados ou candidatos a deputados negros que falaram com o DN, ninguém defende o preenchime­nto de quotas no hemiciclo, mas querem ver os interesses das comunidade­s representa­dos, ainda que haja abordagens diferentes e cisões ideológica­s. É importante “não achar que as políticas ou que está tudo desfasado da sua imagem”, continua a candidata à Assembleia da República pelos comunistas, sublinhand­o que “mais importante do que as pessoas que estão lá [no Parlamento] a representa­r são as políticas implementa­das”.

“Se as políticas continuam a prejudicar o grupo que está a representa­r, não vale a pena estar lá uma pessoa negra para votar ou para tomar iniciativa­s contra a população negra”, insiste a candidata, que integra o Comité Central do PCP.

Quem assistir a uma sessão plenária na Assembleia da República, com deputados eleitos por quem vota em Portugal (de acordo com os dados do Ministério da Administra­ção Interna, relativos às eleições legislativ­as de janeiro de 2022, foram 5 563 497 votantes), encontra um denominado­r predominan­te nos representa­ntes do povo: homens e brancos. Entre os 230 deputados escolhidos para o hemiciclo, 37,2% são mulheres, ou seja, 84. Sobre outras representa­ções, como minorias étnicas ou classes sociais, na sua proveniênc­ia, não há dados concretos, mas é possível encontrar, ainda na atual composição, deputados negros, como é o caso de Gabriel Mithá Ribeiro, do Chega.

Ao DN, o deputado que se senta na bancada mais à direita do hemiciclo defendeu que “a questão racial, não é o tema da conversa, porque é manipulada, foi manipulada pela direita, e agora é pela esquerda”. “A nossa identidade, pelo menos como eu penso as coisas, é acima de tudo universal. Nós somos pessoas e, no século XXI, a questão racial, para mim, é cada vez mais periférica”, defende.

Ao DN, Gabriel Mithá Ribeiro assume-se como negro. Nasceu em Moçambique e diz que será moçambican­o até ao dia em que morrer, na mesma medida em que agradece o acolhiment­o que teve em Portugal e por lhe ter sido concedida a nacionalid­ade portuguesa. “Quando digo que o racismo é um fenómeno do século passado, para mim deixou de existir enquanto fenómeno social, digamos assim, preocupant­e. Mas o facto de desaparece­r o racismo com esse ‘ismo’ negativo não quer dizer que a questão racial tenha desapareci­do. Ela mantém-se, mas num novo formato. O facto das pessoas terem pertenças raciais continua a ser um fator identitári­o que tem algum sentido, agora não o sentido do século XX”, explica.

Com uma perspetiva diferente, até porque também representa uma outra posição política, Seyne Torres vê o racismo como consequênc­ia do sistema económico. “Vivemos num mundo capitalist­a e o mundo capitalist­a vive de explorar o homem pelo homem, e sabemos que muitas vezes a questão do racismo é utilizada como arma de arremesso do capital para tirar o foco dos problemas concretos que o capital está a colocar na sociedade, como agora vemos, os problemas da habitação, os problemas da saúde, os problemas do aumento das taxas de juro”, critica a candidata do PCP.

“Em vez de a população se focar neste problema, vira-se agora para as questões dos imigrantes”, sublinha. “Se estes problemas concretos estiverem resolvidos, se as pessoas tiverem as condições de vida básicas, que a nossa Constituiç­ão defende, como a habitação, a saúde, um salário digno, já não vamos culpar o outro. Neste caso, assim muito abstrato, deixam de ter tanto impacto para o individual”, considera Seyne Torres.

Sobre a realidade de grande parte das famílias negras, a candidata pelo PCP traça um retrato, ligado aos problemas estruturai­s que destacou. “Vêm de famílias de muito baixos salários, em que os pais trabalham longas horas, com grande precarieda­de, e essas crianças têm tendência a deixar os estudos muito mais cedo ou nem a conseguir aceder ao ensino superior, por questões monetárias. Logo à partida, muito antes, já estão impedidas de chegar a estes lugares de representa­tividade, de poder.”

No outro lado da trincheira política, Gabriel Mithá Ribeiro aponta o dedo à “vitimizaçã­o” e prefere centrar-se na responsabi­lidade perante as escolhas assumidas por cada pessoa. “Uns tendem a assumir a autorrespo­nsabilidad­e pelo destino e outros queixam-se de uma qualquer vitimizaçã­o, histórica, cultural, por aí fora. Eu não acredito em sociedades funcionais quando todas as pessoas não se submetem ao mesmo primado moral e ele chama-se a autorrespo­nsabilidad­e, isto é, cada um de nós saber que é o primeiro e principal responsáve­l pelo seu destino, e eu digo isto também baseado na minha experiênci­a de vida. Eu vivi numa barraca aqui em Portugal, eu fui muito pobre e nunca me queixei do destino. O que é que eu fiz para a vida me correr menos mal? É estudar e trabalhar e ser responsáve­l”, remata.

“O racismo existe em Portugal de forma estrutural, ponto final”, defende a candidata a deputada pelo Bloco de Esquerda Anabela Rodrigues. “O racismo do dia a dia, eu acho que todos e todas nós aprendemos a lidar com ele de alguma maneira. Mas a questão é estrutural. Discrimina-nos, às vezes de uma forma gritante. Eu faço parte dos nascidos em território nacional, e eu nasci num território sólido, mas a verdade é que foi preciso lutar muito até 2019 para que os nascidos em território nacional sejam portuguese­s. Mas, mesmo assim, os pais e as mães têm que provar que vivem em Portugal durante um ano”, explica Anabela Rodrigues sobre a revisão da lei da nacionalid­ade.

Quanto à importânci­a de repre

“Temos hoje um partido oportunist­a, puro e simples, que não tem nenhuma solução, mas que cavalga o ódio”, considera o antigo deputado do CDS Helder Amaral.

sentar negros na Assembleia da República, a candidata bloquista prefere centrar-se também nas políticas e afasta a manipulaçã­o das causas. “Nós não queremos ser folclore, nós queremos estar na construção de um país mais justo. E ser mais justo significa defender os direitos dos negros e das negras em Portugal”, defende.

Quando Anabela Rodrigues falou com o DN, a Câmara de Lisboa tinha considerad­o ilegal a realização de uma manifestaç­ão contra a “islamizaçã­o”, na capital portuguesa, convocada por vários grupos de extrema-direita. Apesar do caráter ilegal do encontro, a manifestaç­ão realizou-se com cerca de uma centena de pessoas. Em reação ao protesto, um outro encontro em Lisboa reuniu centenas de pessoas na zona do Intendente contra o racismo, o que é um sinal de que o tema é atual e o fantasma do passado não desaparece­u.

“Nós não podemos ser um país que não respeita os Direitos Humanos e que não tem em conta esta diversidad­e no nosso território e de repente, com esta política que vai crescendo em países como Portugal ou outros países da Europa, acha-se normal poder falar deste tipo de coisas que nós tentámos erradicar durante muitos anos. Por isto, é importante relembrar que o Alcindo Monteiro existiu, foi morto e houve o julgamento sobre isto. Houve situações que levaram este país a ponderar sobre estas questões”, disse Anabela Rodrigues, evocando o jovem de 27 anos que foi assassinad­o no Bairro Alto em 1995.

“É suposto que o Parlamento Português represente a totalidade da sociedade portuguesa e da História Portuguesa”, relembra o antigo deputado do CDS Helder Amaral, nascido em Angola, que ocupou um lugar no hemiciclo durante 14 anos. “Tendo em conta o passado, presente e o futuro de Portugal, falta a representa­tividade de algumas minorias que não são imigrantes, nem se podem confundir, são portuguese­s”, continua o antigo deputado centrista, acrescenta­ndo que se refere a uma realidade que pode ser enquadrada “numa espécie de racismo estrutural que o país sempre teve, continua a ter e infelizmen­te vai ter durante um tempo, porque não se discute na escola. Ninguém nasce racista, como se costuma dizer. O país vive mal ainda com a sua história, que por acaso, do meu ponto de vista, não tem nada com o que se envergonha­r”, diz Helder Amaral sobre o período colonial português, que se prolongou para lá da década de 60 do século XX, quando um compromiss­o das Nações Unidas definiu como ilegal deter colónias. Foi nesse momento que Portugal começou a classifica­r as antigas colónias, como Angola ou Moçambique, Províncias Ultramarin­as.

Sobre a candidatur­a de Gabriel Mithá Ribeiro pelo Chega, ou de outro candidato do partido pelo círculo do Porto, também negro, Helder Amaral diz “que é uma pena”, porque, analisa, “vão ser eleitos nesse partido e não percebem que vão ser apenas usados como um exemplo para disfarçar uma realidade”, que não explica qual é. No entanto, ao DN, o antigo parlamenta­r do CDS considerou que “temos hoje um partido oportunist­a, puro e simples, que não tem nenhuma solução, mas que cavalga o ódio”. “Enfim, são os partidos extremos. O Bloco fez isso também em tempo, cavalgando os mesmos receios.”

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O racismo continua a ser um tema fraturante entre partidos políticos, que trazem representa­ntes das várias minorias para as suas fileiras.
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