Negros no Parlamento. “A ideia é estar na construção de um país mais justo”
O DN ouviu deputados e candidatos, entre a esquerda e a direita, que conhecem as realidades das minorias. Helder Amaral, Gabriel Mithá Ribeiro, Seyne Torres e Anabela Rodrigues têm várias ideias sobre racismo, história e futuro. Em comum, têm a vontade de dar voz a quem não a tem.
É “importante a representatividade, nem que seja para os jovens, como os de São Brás [Freguesia na Amadora, na periferia de Lisboa] e outros, olharem e pensarem: ‘Eu posso chegar aí também e vou fazer o esforço para tal’.”, disse ao DN a candidata a deputada pelo PCP Seyne Torres. Entre todos os atuais deputados ou candidatos a deputados negros que falaram com o DN, ninguém defende o preenchimento de quotas no hemiciclo, mas querem ver os interesses das comunidades representados, ainda que haja abordagens diferentes e cisões ideológicas. É importante “não achar que as políticas ou que está tudo desfasado da sua imagem”, continua a candidata à Assembleia da República pelos comunistas, sublinhando que “mais importante do que as pessoas que estão lá [no Parlamento] a representar são as políticas implementadas”.
“Se as políticas continuam a prejudicar o grupo que está a representar, não vale a pena estar lá uma pessoa negra para votar ou para tomar iniciativas contra a população negra”, insiste a candidata, que integra o Comité Central do PCP.
Quem assistir a uma sessão plenária na Assembleia da República, com deputados eleitos por quem vota em Portugal (de acordo com os dados do Ministério da Administração Interna, relativos às eleições legislativas de janeiro de 2022, foram 5 563 497 votantes), encontra um denominador predominante nos representantes do povo: homens e brancos. Entre os 230 deputados escolhidos para o hemiciclo, 37,2% são mulheres, ou seja, 84. Sobre outras representações, como minorias étnicas ou classes sociais, na sua proveniência, não há dados concretos, mas é possível encontrar, ainda na atual composição, deputados negros, como é o caso de Gabriel Mithá Ribeiro, do Chega.
Ao DN, o deputado que se senta na bancada mais à direita do hemiciclo defendeu que “a questão racial, não é o tema da conversa, porque é manipulada, foi manipulada pela direita, e agora é pela esquerda”. “A nossa identidade, pelo menos como eu penso as coisas, é acima de tudo universal. Nós somos pessoas e, no século XXI, a questão racial, para mim, é cada vez mais periférica”, defende.
Ao DN, Gabriel Mithá Ribeiro assume-se como negro. Nasceu em Moçambique e diz que será moçambicano até ao dia em que morrer, na mesma medida em que agradece o acolhimento que teve em Portugal e por lhe ter sido concedida a nacionalidade portuguesa. “Quando digo que o racismo é um fenómeno do século passado, para mim deixou de existir enquanto fenómeno social, digamos assim, preocupante. Mas o facto de desaparecer o racismo com esse ‘ismo’ negativo não quer dizer que a questão racial tenha desaparecido. Ela mantém-se, mas num novo formato. O facto das pessoas terem pertenças raciais continua a ser um fator identitário que tem algum sentido, agora não o sentido do século XX”, explica.
Com uma perspetiva diferente, até porque também representa uma outra posição política, Seyne Torres vê o racismo como consequência do sistema económico. “Vivemos num mundo capitalista e o mundo capitalista vive de explorar o homem pelo homem, e sabemos que muitas vezes a questão do racismo é utilizada como arma de arremesso do capital para tirar o foco dos problemas concretos que o capital está a colocar na sociedade, como agora vemos, os problemas da habitação, os problemas da saúde, os problemas do aumento das taxas de juro”, critica a candidata do PCP.
“Em vez de a população se focar neste problema, vira-se agora para as questões dos imigrantes”, sublinha. “Se estes problemas concretos estiverem resolvidos, se as pessoas tiverem as condições de vida básicas, que a nossa Constituição defende, como a habitação, a saúde, um salário digno, já não vamos culpar o outro. Neste caso, assim muito abstrato, deixam de ter tanto impacto para o individual”, considera Seyne Torres.
Sobre a realidade de grande parte das famílias negras, a candidata pelo PCP traça um retrato, ligado aos problemas estruturais que destacou. “Vêm de famílias de muito baixos salários, em que os pais trabalham longas horas, com grande precariedade, e essas crianças têm tendência a deixar os estudos muito mais cedo ou nem a conseguir aceder ao ensino superior, por questões monetárias. Logo à partida, muito antes, já estão impedidas de chegar a estes lugares de representatividade, de poder.”
No outro lado da trincheira política, Gabriel Mithá Ribeiro aponta o dedo à “vitimização” e prefere centrar-se na responsabilidade perante as escolhas assumidas por cada pessoa. “Uns tendem a assumir a autorresponsabilidade pelo destino e outros queixam-se de uma qualquer vitimização, histórica, cultural, por aí fora. Eu não acredito em sociedades funcionais quando todas as pessoas não se submetem ao mesmo primado moral e ele chama-se a autorresponsabilidade, isto é, cada um de nós saber que é o primeiro e principal responsável pelo seu destino, e eu digo isto também baseado na minha experiência de vida. Eu vivi numa barraca aqui em Portugal, eu fui muito pobre e nunca me queixei do destino. O que é que eu fiz para a vida me correr menos mal? É estudar e trabalhar e ser responsável”, remata.
“O racismo existe em Portugal de forma estrutural, ponto final”, defende a candidata a deputada pelo Bloco de Esquerda Anabela Rodrigues. “O racismo do dia a dia, eu acho que todos e todas nós aprendemos a lidar com ele de alguma maneira. Mas a questão é estrutural. Discrimina-nos, às vezes de uma forma gritante. Eu faço parte dos nascidos em território nacional, e eu nasci num território sólido, mas a verdade é que foi preciso lutar muito até 2019 para que os nascidos em território nacional sejam portugueses. Mas, mesmo assim, os pais e as mães têm que provar que vivem em Portugal durante um ano”, explica Anabela Rodrigues sobre a revisão da lei da nacionalidade.
Quanto à importância de repre
“Temos hoje um partido oportunista, puro e simples, que não tem nenhuma solução, mas que cavalga o ódio”, considera o antigo deputado do CDS Helder Amaral.
sentar negros na Assembleia da República, a candidata bloquista prefere centrar-se também nas políticas e afasta a manipulação das causas. “Nós não queremos ser folclore, nós queremos estar na construção de um país mais justo. E ser mais justo significa defender os direitos dos negros e das negras em Portugal”, defende.
Quando Anabela Rodrigues falou com o DN, a Câmara de Lisboa tinha considerado ilegal a realização de uma manifestação contra a “islamização”, na capital portuguesa, convocada por vários grupos de extrema-direita. Apesar do caráter ilegal do encontro, a manifestação realizou-se com cerca de uma centena de pessoas. Em reação ao protesto, um outro encontro em Lisboa reuniu centenas de pessoas na zona do Intendente contra o racismo, o que é um sinal de que o tema é atual e o fantasma do passado não desapareceu.
“Nós não podemos ser um país que não respeita os Direitos Humanos e que não tem em conta esta diversidade no nosso território e de repente, com esta política que vai crescendo em países como Portugal ou outros países da Europa, acha-se normal poder falar deste tipo de coisas que nós tentámos erradicar durante muitos anos. Por isto, é importante relembrar que o Alcindo Monteiro existiu, foi morto e houve o julgamento sobre isto. Houve situações que levaram este país a ponderar sobre estas questões”, disse Anabela Rodrigues, evocando o jovem de 27 anos que foi assassinado no Bairro Alto em 1995.
“É suposto que o Parlamento Português represente a totalidade da sociedade portuguesa e da História Portuguesa”, relembra o antigo deputado do CDS Helder Amaral, nascido em Angola, que ocupou um lugar no hemiciclo durante 14 anos. “Tendo em conta o passado, presente e o futuro de Portugal, falta a representatividade de algumas minorias que não são imigrantes, nem se podem confundir, são portugueses”, continua o antigo deputado centrista, acrescentando que se refere a uma realidade que pode ser enquadrada “numa espécie de racismo estrutural que o país sempre teve, continua a ter e infelizmente vai ter durante um tempo, porque não se discute na escola. Ninguém nasce racista, como se costuma dizer. O país vive mal ainda com a sua história, que por acaso, do meu ponto de vista, não tem nada com o que se envergonhar”, diz Helder Amaral sobre o período colonial português, que se prolongou para lá da década de 60 do século XX, quando um compromisso das Nações Unidas definiu como ilegal deter colónias. Foi nesse momento que Portugal começou a classificar as antigas colónias, como Angola ou Moçambique, Províncias Ultramarinas.
Sobre a candidatura de Gabriel Mithá Ribeiro pelo Chega, ou de outro candidato do partido pelo círculo do Porto, também negro, Helder Amaral diz “que é uma pena”, porque, analisa, “vão ser eleitos nesse partido e não percebem que vão ser apenas usados como um exemplo para disfarçar uma realidade”, que não explica qual é. No entanto, ao DN, o antigo parlamentar do CDS considerou que “temos hoje um partido oportunista, puro e simples, que não tem nenhuma solução, mas que cavalga o ódio”. “Enfim, são os partidos extremos. O Bloco fez isso também em tempo, cavalgando os mesmos receios.”