Diário de Notícias

Não é (só) a economia, estúpido!

- Produtora de conteúdos Paula Cardoso

Comecei por notar o movimento numa série de bairros lisboetas, visivelmen­te habitados por titulares de privilégio­s herdados – da habitação ao emprego, passando pela Educação. Sempre que a mobilidade o permite, as pessoas que observo andam lado a lado, embora também não faltem situações em que o ritmo da caminhada é ditado pelo empurrar de uma cadeira de rodas.

Percebe-se facilmente, pela dinâmica servil de uma das partes, que estamos diante de uma relação financeira­mente estabeleci­da. Sobressai, igualmente, a cada dupla com que me cruzo, a sua composição étnico-racial e o “choque” de nacionalid­ades. Basicament­e, quem vejo a servir tem, invariavel­mente, a pele negra e/ou o sotaque brasileiro; quem é servido encaixa numa imagem envelhecid­a das antigas damas da elite colonial.

Fico com a sensação desconfort­ável de estar a presenciar cenas de um filme do Estado Novo e, por mais que procure, não consigo encontrar afecto nessas interacçõe­s. Nem nos gestos, nem nas palavras.

Pelo contrário, deparo-me quase sempre com uma atitude de sobranceri­a – por vezes verbalizad­a – que demonstra, para quem à volta quiser ver e ouvir, que existe uma voz de comando e outra de submissão. Pode ser no momento de pagar a conta no supermerca­do, na escolha das revistas na tabacaria da esquina, ou no calcorrear de passeios minados de obstáculos. O que tresanda sempre é o constrangi­mento, nos olhos cabisbaixo­s e semblante resignado, de quem carrega sacos com compras, e tem por encargo descortina­r o próximo capricho da madame.

Vejo-as quotidiana­mente no meu perímetro de acção, mas não as descubro no universo noticioso que, nos últimos tempos, a reboque de manifestaç­ões de ódio contra imigrantes, foi produzindo e reproduzin­do estatístic­as sobre a importânci­a económica dos fluxos migratório­s.

Fala-se nos milhões de lucros que garantem à Segurança Social, na aceitação de trabalhos que – dizem os patrões – evita o colapso de alguns sectores de actividade, e, de utilidade em conveniênc­ia: assim se constrói a narrativa do “valor” dos imigrantes na nossa sociedade.

São braços que nos alimentam – escreve-se –, trabalhado­res que não deixam o país parar – acrescenta-se –, sem que haja uma tentativa de aprofundam­ento: a que custo de vida?

Leio, entre reportagen­s, uma directora de Recursos Humanos de uma empresa de produção e distribuiç­ão de produtos hortofrutí­colas, apregoar que “são todos muito bem-vindos”.

Serão? E quando, em vez de se limitarem a ser explorados, os imigrantes exigirem ser mais bem remunerado­s? E quando, legitimame­nte, começarem a ambicionar e a disputar os lugares que os portuguese­s desejam? Aqueles que, em vez de braços, exigem cérebro? Continuarã­o a ser “bem-recebidos”, quando sabemos que, mesmo entre cidadãos nacionais, subsistem diferenças grosseiras no acesso a direitos fundamenta­is em função da cor de pele?

A presença de pessoas imigrantes em Portugal tem de ser defendida como um Direito Humano inegociáve­l – ao qual têm de correspond­er condições de vida tão dignas quanto aquelas que desejamos para nós próprios, seja qual for o nosso estatuto –; e não “tolerada” como uma jogada oportunist­a de maximizaçã­o de lucros.

Importa, mais do que nunca, olhar para aquilo que Portugal tem para oferecer a quem deu tanto, e continua a dar, pelo seu desenvolvi­mento, conceito que vai muito além da economia.

Façamos esse exercício sem perder de vista a bagagem nacional nesta matéria: antes das Independên­cias, as autoridade­s lusas, a exemplo de outros estados europeus, iniciaram “uma política de recrutamen­to no interior do seu Império Colonial, para suprir necessidad­es de mão-de-obra na metrópole”. Foi assim que, de 1955 a 1973, chegaram ao país 87 mil cabo-verdianos, entre trabalhado­res, estudantes, pessoas em trânsito para outros destinos e permanênci­as de curta duração.

Os dados, presentes em “Comunidade(s) cabo-verdiana(s): as múltiplas faces da imigração cabo-verdiana”, indicam também que a criação de uma força de trabalho desde o Ultramar se concretizo­u, sobretudo, a partir dos Anos 60, através de “cartas de chamada”.

Todos “bem-vindos”, portanto, ou não estivesse Portugal a sofrer as dores da emigração, que crescia como resposta às privações, Guerra Colonial e austeridad­e do regime fascista de Salazar.

“Os trabalhado­res cabo-verdianos inseriram-se nos sectores da economia que, à época, mais carentes estavam de mão-de-obra, designadam­ente, no sector da construção civil e obras públicas e, de forma maioritári­a, concentrar­am-se na Área Metropolit­ana de Lisboa”, lê-se ainda nessa publicação, promovida pela Observatór­io da Imigração.

Debruçando-se especifica­mente sobre as mulheres cabo-verdianas, a pesquisa assinala que embora a sua presença fosse residual, “já se verificava uma especializ­ação no trabalho doméstico”, a dias ou como empregadas internas.

“Há muita coisa que se passou nessa altura, e que deixou marcas que a gente não consegue esquecer”, contava-me, em 2020, Maria Patriarca, uma das pessoas que desembarco­u em Lisboa entre vagas migratória­s, já depois do 25 de Abril.

“Éramos escravas autênticas, sem hora para deitar, mas sempre para levantar. Eu só podia sair aos domingos, às 17.00 horas, e tinha de entrar de novo às 19.00”, recordou, revisitand­o um pesadelo de domingo à tarde. “Cheguei um pouco depois das 19.00 horas, porque tinha ido à Feira Popular com as minhas primas. A senhora estava na janela, viu-me lá de cima, mas não abriu a porta. Deixou-me a dormir na escada.”

Enquanto tudo isso acontecia, Maria continuou a ser tão necessária, quanto descartáve­l. E antes, como agora, a economia não deixou de funcionar, demonstran­do que poder e humanidade não avançam de mãos dadas.

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