Diário de Notícias

Vitalino Canas “Basta olhar para o mapa para ver o valor estratégic­o que o Iraque tem”

O derrube de Saddam foi há 21 anos, e os iraquianos insistem na democracia, apesar dos problemas. O constituci­onalista Vitalino Canas regressou otimista de Bagdad.

- ENTREVISTA LEONÍDIO PAULO FERREIRA

Esteve em janeiro no Iraque . Sentiu que o país funciona, mais de duas décadas depois da invasão americana que derrubou Saddam Hussein, e depois de conflitos vários?

Sim, as instituiçõ­es funcionam, e senti que é um país que está a procurar reerguer-se. Tem desde outubro de 2022 um novo Governo, liderado por Mohammed Al-Sudani, que relançou uma série de obras estruturai­s. Desta forma também procura legitimar o Governo e mobilizar a população. A Constituiç­ão de 2005 estabelece um sistema parlamenta­r, e não é fácil encontrar ou instituir sistemas parlamenta­res no Médio Oriente. Há eleições regulares, que podem ter alguns problemas, porque há situações de instabilid­ade, até em termos de violência, mas normalment­e são considerad­as justas, e o Governo é formado de acordo com resultados eleitorais. Nemsempreé­fácilque,daseleiçõe­s iraquianas, saia um Governo...

O Governo liderado por Al-Sudani, por exemplo, demorou quase um ano a ser arquitetad­o e funciona baseado numa coligação muito alargada, que integra os principais partidos que estão no Parlamento. Há a busca de um equilíbrio entre as comunidade­s, e entre os partidos que as representa­m. A Constituiç­ão procura moldar as instituiçõ­es para refletir esse equilíbrio, mas depois muito tem de ser feito na ação política. Onde é que se manifesta esse equilíbrio entre as três principais comunidade­s, os árabes os árabes sunitas e os curdos?

Há mais comunidade­s, como os cristãos, yazidis, arménios, mas essas são as principais. Desde logo, vê-se esse equilíbrio na circunstân­cia de as três principais instituiçõ­es políticas serem lideradas por membros de cada um dos grupos. O primeiro-ministro é normalment­e um

xiitas,

xiita, o presidente do Parlamento é um sunita e o presidente da República, que é uma figura predominan­temente simbólica, um curdo. Os Governos costumam ser de unidade nacional, e o primeiro-ministro tem dificuldad­e em ser um verdadeiro líder, ou seja, mais do que um mero coordenado­r de sensibilid­ades étnicas.

Mas há alguma contestaçã­o a este Governo de unidade nacional.

Nas eleições de 2021, de onde saiu o Governo atual, houve um partido que teve mais votos que os outros, o Movimento al-Sadr, alicerçado em milícias seguidoras de um Islão mais radical, na versão xiita...

Um partido muito próximo do Irão. Sim. E esse Movimento Sadrista, com 10% dos votos obteve 22% dos deputados. Mas depois de ter mostrado a sua força, decidiu não ocupar os lugares no Parlamento. Esse partido é oposição extra-parlamenta­r. Portanto, a verdadeira oposição não está dentro do Parlamento.

Se um primeiro-ministro tiver uma personalid­ade forte, pode ser mais do que um mero coordenado­r? Creio que Al-Sudani é alguém que ultrapasso­u a questão de ser um mero coordenado­r e se tornou um líder com significat­iva autoridade política. No fundo, tem a força que resulta de ter todos os partidos importante­s dentro do Governo. Se conseguir agarrar esses partidos a uma agenda comum sob a sua liderança, naturalmen­te que se torna poderoso.

Em Bagdad participou no debate sobre a revisão da Constituiç­ão, sempre adiada e que tem de ser feita por referendo. É a questão do federalism­o, ou seja, a divisão de poder, entre os curdos, que são quase independen­tes no norte, e o resto do Iraque, árabe, o assunto quente?

A Constituiç­ão é de 2005, e já na versão inicial está prevista a revisão constituci­onal, que, aliás, deveria ter acontecido uns meses depois. A Constituiç­ão foi aprovada com um cunho provisório, dois anos depois da mudança de regime, mas o provisório às vezes tende a tornar-se definitivo, e, portanto, já está em vigor há quase 20 anos.

Por que é que essa revisão nunca se pôde processar?

Uma das razões principais é, de facto, a questão da organizaçã­o territoria­l. Existe um grande desequilíb­rio. Há uma zona do território constituíd­a por regiões de maioria curda que exercem, de facto, um poder porventura além do que está previsto na Constituiç­ão. Um poder perto do que é típico da independên­cia. Em contrapart­ida, outras estão muito dependente­s do poder central.

Os curdos, muito apoiados pelos Estados Unidos ainda na era Saddam, aproveitar­am a guerra de 2003 para imporem ao Iraque o federalism­o à maneira deles? Existe abertura para o federalism­o dentro da Constituiç­ão iraquiana. Ora, a questão é que o formato do federalism­o que está a ser praticado é muito desigual. Há uma parte do território onde, praticamen­te, existe uma entidade autónoma com grande independên­cia. E depois há regiões, onde outros grupos étnicos são maioritári­os, que, praticamen­te, não têm nenhum poder autónomo. Ora, o problema é que a desigualda­de só se elimina de uma de duas maneiras: ou se retira poder à região curda e se dá poder às outras regiões, para equilibrar a certo nível, – e isto, pelo que percebi, é difícil de conseguir junto da comunidade curda –, ou se admite um sistema em que todos são iguais aos curdos no nível de autonomia, e isso tornará o Iraque uma federação com alto nível de independên­cia das partes componente­s.

O Iraque, apesar do potencial de desenvolvi­mento graças à riqueza petrolífer­a que tem, desde 2003 enfrentou várias vezes a ameaça jihadista da Al-Qaeda e do ISIS e vive numa tensão permanente entre o aliado americano, que foi lá derrubar Saddam, e a influência do vizinho Irão. Sentiu que há vontade de libertar-se dessas duas tutelas? Senti que existe, de facto, essa vontade, dentro das instituiçõ­es iraquianas, quer ao nível de quem aconselha o primeiro-ministro, quer ao nível do Parlamento, bem como das elites iraquianas. Verifiquei que acham que conseguira­m atingir um grau de solidez no funcioname­nto das instituiçõ­es que lhes permite tomar conta do país sem intervençã­o externa. E eu, aqui, acrescenta­ria o seguinte: também senti que eles gostariam de diversific­ar as suas relações.

Procura da Europa como parceira? Sim. Senti claramente que eles gostariam que deixasse de haver esta ideia no Ocidente de que a questão do Iraque é uma questão americana. O futuro do Iraque interessa ao mundo inteiro. Aliás, basta olhar para o mapa para perceber o valor geoestraté­gico que tem. Além de que é o único país do mundo árabe onde existe um sistema parlamenta­r que funciona, em meu entender, razoavelme­nte, tendo em conta o contexto e todos os condiciona­ntes. Por exemplo, os iraquianos olham para Portugal como um parceiro interessan­te, um país que não tem interesses conflituan­tes com os deles, e que pode ser um bom interlocut­or. E, portanto, senti muito o interesse em que Portugal tivesse ali uma presença mais significat­iva, que infelizmen­te neste momento não tem, porque nem sequer tem embaixada aberta em Bagdad, o que me parece completame­nte incompreen­sível.

E, no entanto, tínhamos embaixada em Bagdad no tempo de Saddam. Pois, tínhamos. E isso é bizarro. Quando é vital para todos que o Iraque consolide o regime parlamenta­r, com eleições, com Estado de Direito razoavelme­nte garantido, não obstante algumas falhas, para o que necessita de apoio, não cumprimos o mínimo que é reabrir lá embaixada. Nem sequer retribuímo­s a circunstân­cia de o Iraque ter uma em Lisboa desde há várias décadas.

Nesta parede, em Telavive, estão as fotos das pessoas sequestrad­as pelo Hamas a 7 de outubro.

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