Malpractice: uma série para sentir na pele a (de)pressão dos médicos
Ficção britânica a dialogar com o SNS? A série Malpractice aproxima-nos, sem floreados, da realidade extrema de um Serviço de Urgência – Niamh Algar interpreta a médica responsável por um turno que corre mal. A partir de dia 13 nos canais TVCine. Um retra
Vivemos tempos estranhos, em que as mais antigas, essenciais e honrosas profissões parecem estar à beira de um qualquer descalabro, seja pelo envelhecimento da sua classe, seja pela falta de condições em que são exercidas, ou, em casos específicos, pelo descrédito mediático que vão sofrendo. Cada vez mais se pergunta que jovens quererão seguir as carreiras de professor, jornalista, político ou médico, quando o discurso à volta destes ofícios se apresenta como um nevoeiro denso que trava a visibilidade do futuro. É sobre a última – a profissão de médico – que se debruça a série britânica Malpractice, a chegar ao TVCine Emotion no próximo dia 13 (22.10).
Um retrato, duro e de alta tensão, do que pode acontecer numa noite difícil no Serviço de Urgência hospitalar, quando médicos, sem mãos a medir, têm de tomar decisões rápidas e funcionais, correndo o risco de determinar a vida ou a morte de alguém por um pequeno atraso ou erro humano.
No início de Malpractice, entra-se com alguma folga no turno da noite em que a médica Lucinda Edwards, interpretada por uma espantosa Niamh Algar, irá estar a braços com um caso de overdose de opiáceos – e não só. Durante mais ou menos cinco minutos, o espectador ambienta-se e fica por dentro da interação bem oleada dos médicos e enfermeiros daquela unidade, dando-se os primeiros sinais de stress com a chegada da tal vítima de overdose.
Isto quase ao mesmo tempo em que um homem com uma arma invade a sala de espera exigindo que o rapaz que traz consigo, gravemente ferido, seja tratado de imediato. Sem saber para que lado se há de voltar, a Dra. Lucinda entra aqui em plena ação, conseguindo fazer frente ao potencial atirador e levar o jovem ensanguentado para Cirurgia... e ainda deixar a cargo de uma médica novata a rapariga que sofreu overdose (por ser menos grave), explicando verbalmente à colega cada passo do que é preciso ser feito, não cuidando que talvez seja demasiada informação para quem está pela primeira vez a lidar com uma ocorrência do género. Resultado: o miúdo recolhido na sala de espera sobrevive, mas a vítima de overdose sucumbe.
Depois dessa noite infernal que marca o primeiro dos cinco episódios de Malpractice, não haverá mais sossego para Lucinda/Algar. E alguma vez houve?
O que a série vem a analisar, nas entrelinhas do turno que põe esta responsável debaixo de investigação, num suposto cenário de negligência, é a própria pressão altíssima a que os médicos, neste caso, do Serviço Nacional de Saúde Britânico (NHS), estão sujeitos. Apesar de Lucinda ser uma personagem com problemas que se vão revelar para além do “normal”, tratando-se de uma médica exemplar nas práticas de Urgência, a questão de fundo aqui leva-nos sempre ao ponto de rotura de quem vive para o trabalho, ainda mais num período pós-pandémico devidamente assinalado. A saber, estes médicos estiveram na linha da frente do combate à covid-19 e especializaram-se em stress intenso.
( Já agora, e para que conste, à semelhança dos nossos profissionais de saúde, também os britânicos mostraram a sua indignação depois da pandemia, alertando para o subfinanciamento e exaustão do sistema, além dos magros salários.)
Realismo acima de tudo
Um dos aspetos mais notáveis da série passa, justamente, pelo retrato realista da sua dinâmica humana, com um grau de autenticidade que se pode aferir pelo facto de a argumentista, Grace Ofori-Attah, ter como sólida base de inspiração os seus 10 anos de experiência como médica no NHS. Junta-se a isto a realização impecável de Philip Barantini, que antes assinou Ponto de Ebulição (2021), um dos mais febris dramas de cozinha recentes, que lhe deu o treino necessário para a natureza desta ficção televisiva.
Ao contrário das séries populares americanas, que mostram a figura do médico como génio carismático que deslinda os sintomas das doenças mais estranhas (Dr. House, The Good Doctor...), Malpractice só se serve do quotidiano no Serviço de Urgência na medida dos gestos pragmáticos e da faceta menos romântica desse espaço laborioso.
Na verdade, estamos a falar de um drama que, apesar de passar pela fase do tribunal, ganha pulso sobretudo pela sua qualidade de thriller, com uma protagonista investigada que passa, ela própria, a investigar clandestinamente as forças exteriores ao que aconteceu na fatídica noite. Movendo-se em território conspirativo, Lucinda é um corpo e uma mente em ebulição constante, que não oferece sequer tranquilidade de julgamento: a nossa relação com as suas atitudes pode variar de momento para momento. E aí está o grande estímulo da escrita de Ofori-Attah, que não descansa sobre a imagem de uma médica de simples boa conduta.
É pelas zonas cinzentas, ou melhor, pelas imperfeições e vigor neurótico da personagem que nos envolvemos com os seus traços de humanidade e atitude de risco. Mas sempre, sempre olhando para alguém que representa um sistema em colapso interno.
Como fez notar a incansável Niamh Algar, em entrevista à Glamour, depois de ter acompanhado de perto o trabalho dos verdadeiros profissionais de saúde das Urgências numa longa noite: “O que mais me impressionou foi a quantidade de horas e o facto de não haver tempo suficiente para alguém se recompor. Não há tempo de inatividade ou duty of care (dever de cuidado). E o que tem sido surpreendente nas reações à série é que se iniciaram conversas online sobre o dever de cuidar dos médicos e de toda a equipa.”
Reconhece a atriz, incapaz de se imaginar a si própria neste ofício, em que “não se sabe o que vai passar pela porta a seguir”.
Para já, o que se segue é uma segunda temporada de Malpractice, ainda sem data de estreia.