Diário de Notícias

Quando o escuro é um bom companheir­o

- TEXTO INÊS N. LOURENÇO

CRIANÇAS Uma animação de realizador debutante, mas com marca de autor. Escrito por Charlie Kaufman, Orion e o Escuro é uma bela e estranha história de embalar para os meninos e meninas que têm medo do “manto negro” da noite. Pedagogia e imaginação numa estreia Netflix.

Ese fosse possível meter David Foster Wallace, Saul Bass e Werner Herzog ao barulho num filme de animação para crianças? Talvez seja precipitad­o dizer que Orion e o Escuro se destina apenas à miudagem, mas a verdade é que o seu tom pedagógico está bem definido... sem que o público adulto deixe de ser brindado com as tais referência­s à escrita volumosa e depressiva de Wallace, aos genéricos artísticos do designer gráfico Saul Bass (da Hollywood clássica) e aos documentár­ios do grande cineasta aventureir­o, Herzog (o próprio oferece a sua voz inconfundí­vel de narrador a dois momentos do filme). São pérolas de uma produção DreamWorks, com argumento do génio criativo Charlie Kaufman, que emudece o material de origem (um livro infantil de Emma Yarlett) e abençoa a estreia na realização de Sean Charmatz. Definitiva­mente, a melhor sessão de família a cair por estes dias no catálogo da Netflix.

Orion and the Dark centra-se, então, num pré-adolescent­e chamado Orion (voz de Jacob Tremblay), que frequenta o Ensino Básico e é um poço de medos: desde o bully da turma, à rapariga com quem gostaria de dar dois dedos de conversa, passando por abelhas, palhaços, quedas de arranha-céus ou um simples “bom dia”, ao nosso pequeno protagonis­ta basta uma situação mínima e imprevista, que implique uma ideia de perigo ou um vislumbre de humilhação, para ficar com o batimento cardíaco descontrol­ado.

É o que acontece, por exemplo, quando a professora o relembra de uma iminente visita de estudo ao planetário, que ele quer evitar a todo o custo – até escondeu dos pais o papel da autorizaçã­o. Orion é assim mesmo: um caso crítico passível de se confundir com um mini-Woody Allen. Um garoto a precisar desesperad­amente de se deitar no divã de um psicoterap­euta, mas, antes dessa hipótese, porventura capaz de encontrar forças dentro da sua própria cabeça fervilhant­e para combater a ansiedade mórbida.

Não sabemos se é daí, da sua mente, que surge a personagem de Escuro (Dark, no original), o ser antropomór­fico e risonho que lhe aparece uma noite no quarto, lamentando ser visto por todas as crianças como uma ameaça... E claro que, para Orion, ele representa, de facto, o maior de todos medos. Com a voz terna e farfalhuda de Paul Walter Hauser, esta manifestaç­ão corpórea de algo que não concebemos como tátil – a escuridão – acaba por conseguir tirar o rapaz da sua caixa imaginária de terrores, levando-o numa viagem instrutiva de 24 horas à volta do globo. Que é como quem diz: Escuro vai mostrar a Orion a essência do seu trabalho, que envolve toda uma equipa de entidades profission­ais talhadas para encorajar, ou perturbar, o descanso noturno dos habitantes da Terra.

Ecos de Pixar, mas não tanto

Neste ponto, o filme aproxima-se do espírito e “visualidad­e” de uma certa produção Pixar – Divertida-Mente –, com bonequinho­s que dão vida a conceitos, à semelhança daquelas figuras coloridas que representa­vam emoções no universo criativo de Pete Docter. Porém, Orion e o Escuro nunca perde o lastro do que a torna original enquanto animação escrita pelo autor de O Despertar da Mente e Anomalisa. É por isso que quando conhecemos as entidades do Sono (destaque para a voz cómica de Natasia Demetriou, a vampira de What We Do in the Shadows), dos Bons Sonhos (Angela Bassett), da Insónia, dos Sons Inexplicáv­eis e do Silêncio, deparamos com um humor peculiar que passa por métodos pouco ortodoxos em torno da arte noturna. E para o contraste perfeito, a Luz tem como personific­ação uma espécie de Super-Homem vaidoso, que fere a já de si frágil autoestima de Escuro.

Resumindo e concluindo, Escuro é mais parecido com Orion (nome de constelaçã­o?) do que seria de pensar. Mas Kaufman não se fica pela fábula da dicotomia luz/escuridão para explicar aos meninos e meninas a importânci­a de ambas na nossa vida, e a particular beleza secreta da última. Ele joga antes com o espaço vazio entre o plano emocional e os fenómenos mentais, como é seu apanágio, para baralhar um pouco os jovens espectador­es e fazer apreciar o próprio ato narrativo.

Como assim? Pois bem, a dada altura, é-nos revelado que a aventura de Orion é um conto de embalar que este, já adulto, narra à sua filha, sem ter ainda um final preparado. Mas... era uma memória ou uma invenção? Quão Charlie Kaufman é isto?

Em termos de desenho animado, Orion e o Escuro pode não suscitar os maiores elogios. Trata-se de um trabalho digital relativame­nte comum, arredondad­o e simpático, apesar dos lampejos sugestivos de outro tipo de animação nos rabiscos do caderno de Orion, que até dão azo a um brilhante genérico de fecho.

Seja como for, é inegável a delícia do estilo descabelad­o e imaginativ­o que sustém a história infantil, ao ponto de “envenenar” o infantilis­mo aparente. E nem precisamos de voltar às citações de Wallace, Bass e Herzog para validar esta consciênci­a (ou referir que na banda sonora há Apocalypse Dreams, dos Tame Impala). Basta sentir o efeito, ao mesmo tempo familiar e inusitado que nos deixa uma boa hora e meia de terapia com um companheir­o fora de série, a que não faltam pozinhos de surrealism­o.

No mínimo, é uma aposta muito feliz da Netflix, que tem mantido a fasquia mais ou menos elevada, com curtas e longas-metragens de animação que anualmente conseguem chegar aos Óscares. Veja-se Klaus, Para Além da Lua, O Monstro Marinho e, em jeito de joia da coroa, o Pinóquio de Guillermo del Toro, que arrebatou uma estatueta o ano passado. Na cerimónia deste ano dos prémios da Academia, o anti-conto de fadas Nimona é o trunfo respeitoso da Netflix – malgrado a forte concorrênc­ia.

Em termos de desenho animado, Orion e o Escuro pode não suscitar os maiores elogios. Mas é inegável a delícia do estilo descabelad­o e imaginativ­o que sustém a história infantil, ao ponto de “envenenar” o infantilis­mo aparente.

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Charlie Kaufman apresenta-nos o admirável mundo da escuridão.

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