Muita cor, pouco sentimento
Com uma das suas atrizes secundárias nomeada para o Óscar, A Cor Púrpura estreia-se sem grande alarido. Uma versão musical do filme homónimo de Steven Spielberg, que se esmera na qualidade técnica, mas não domina a sensibilidade do texto de origem.
Aos poucos, o género musical vai insistindo em cativar uma geração distante da memória dos Minnellis e Stanley Donens. Um estado de orfandade de referências cinéfilas que, em 2016, se refletiu no brilharete de La La Land, único título capaz de voltar a colocar esse mesmo género na agenda mediática. Já bem depois, Steven Spielberg deu o seu contributo à causa com um notável remake do clássico West Side Story. E é ele o realizador que agora produz, com Oprah Winfrey, um novo A Cor Púrpura, a partir do musical da Broadway de 2005, que se seguiu ao filme assinado pelo próprio em 1985, aí reunindo no elenco Whoopi Goldberg, Margaret Avery e uma debutante Oprah.
Na génese de todas estas versões está um romance de Alice Walker sobre uma jovem negra, Celia, que, no início do século XX, no estado da Geórgia, é abusada pelo pai: engravida duas vezes e essas crianças são-lhes tiradas dos braços pelo perverso progenitor, que as dá para adoção, logo depois entregando de bandeja a própria Celia a um homem bruto que a trata sem o mínimo de dignidade. No novo filme, realizado por Blitz Bazawule, Celia é interpretada pela cantora Fantasia Barrino, enquanto o papel do marido, Mister, pertence ao ator Colman Domingo (neste momento nomeado para o Óscar por Rustin), um malandro charmoso que dentro de portas se transforma numa presença agressiva. Antes de Barrino foi Goldberg quem assumiu a pele de Celia, por isso não admira que venha de lá o bendito cameo, para assinalar a ligação espiritual entre as duas versões de ecrã...
A certa altura, entram também em cena Shug Avery (Taraji P. Henson), uma cantora amante de Mister, e Sofia, a nora valentona desse dono da propriedade, a que Danielle Brooks confere sangue na guelra, substituindo Oprah, do primeiro filme, e alcançando a única nomeação aos Óscares de The Color Purple.
Esse facto constitui uma espécie de derrota para esta produção açucarada, e por vezes aparatosa, com uma história de irmandade feminina que nunca respira plenamente, à parte dos números musicais. Há energia, vida e sincronia de corpos para dar e vender, mas a alma gospel deste lamento afro-americano não consegue quebrar o verniz do filme de encomenda, que é o verniz da Broadway.
A adaptação original, por si só, não estará entre as obras mais iluminadas de Spielberg – foi a sua primeira tentativa de abordar “assuntos sérios” da sociedade americana (os direitos civis), e fê-lo apoiado num ligeiro academismo, ainda assim mais rugoso e com substância dramática.
Ora o que falha n’A Cor Púrpura de Bazawule é precisamente a nota de blues que sustentava o filme de Spielberg. O calor humano aqui só existe enquanto coreografia e música que se olvidam no minuto seguinte. O que não nos impede de reconhecer que o filme tem os seus momentos, e uma fantasia bem justificada. Mas falta sensibilidade em relação à violência do romance de base. Sem ir mais longe: cada uma das atrizes parece desligada do conceito fílmico, como se estivesse sempre à espera da execução do próximo número.