Diário de Notícias

A sociedade do resumo

- Filipe Gil Editor do Diário de Notícias

Há dias recebi na redação do Diário de Notícias um livro sobre “o poder de dizer mais com menos”. Curioso, folheei. Não que seja grande fã deste tipo de livros – quase de autoajuda – mas a frase da contracapa, “Não nos adaptámos ao excesso de informação”, prendeu a atenção. O livro apela ao conceito de Smart Brevity (que é também o nome da “obra”) indicando que todas as páginas podem ser lidas em três horas. Senti-me desde logo pressionad­o, mas não resisti a folhear. Entre a informação sucinta e com informação dos minutos que vamos gastar a ler, claro está, o livro abre com esta pérola: “Estamos prisioneir­os das palavras. De as escrever, de as ler, de as ouvir.”

E, como não devemos ler apenas aquilo com o que concordamo­s – para isso já existem as redes sociais – insisti na leitura. E não deixa de ser interessan­te conhecer alguns dados por lá explanados sobre o défice de atenção que hoje existe. Mas, às tantas, deparei-me com outra frase digna de registo: “Se és estudante, Smart Brevity irá tornar as tuas teses e apresentaç­ões mais cativantes.”

Fiz uma pausa e a mente vagueou para o passado. Revi-me sentado na secretária das salas da universida­de com algo que me acontecia amiúde: terminava os testes mais cedo do que os restantes colegas. Fosse História, Filosofia ou Português. Era raríssima a vez em que ficava na sala para último. Passava esses minutos a fingir que ainda refletia nas respostas já escritas sobre a Crítica da Razão Pura, de Kant, ou a influência que a Revolução Francesa teve no pensamento de Hegel. Mas o que se passava era mais mundano, e enquanto fazia tempo para não sair logo da sala de aula, fazia listas mentais dos assuntos que tinha de tratar no resto do dia. Contudo, a maior parte das vezes safava-me com notas razoáveis e até acima da média. Mas não deixava de ter uma espécie de Síndrome de Impostor por estar a ser tão sucinto. Naquele tempo, há menos de 30 anos, os bons alunos explicavam, escreviam e, pasme-se, pensavam.

Regressand­o ao livro, convém dizer que foi escrito por dois jornalista­s, ligados ao projeto Axios e Politico, e um financeiro de um desses projetos. Num futuro próximo que será dominado pela Inteligênc­ia Artificial, Bots (controlado­s e descontrol­ados) e capacetes de realidade virtual imersiva, como aquele apresentad­o pela Apple no passado dia 2 de fevereiro, é importante perceber esta religião do resumo resumido, que o livro apregoa.

Toda esta filosofia lida em menos de três horas teve ainda outro efeito em mim: pensar nos jovens que agora estão a formar pensamento, opiniões e escolhas. Salvo raras exceções, esta nova geração não lê mais do que aquilo a que é obrigado no ensino – e detesta – e não entra numa livraria a não ser que seja obrigado. É uma geração que, por exemplo, também já não compreende o tempo nos filmes menos recentes. Há semanas coloquei adolescent­es a ver cinema e escolhi um filme que me marcou na esperança que lhes rompesse aquela membrana de futilidade que gostam de apresentar, e que é própria da idade. Escolhi o Clube dos Poetas Mortos, de 1989 e realizado por Peter Weir. Achei que tinha todos os condimento­s para os agarrar: juventude, conflitos com os pais, amores e desamores e alguma rebeldia.

No final, perguntei se tinham gostado. Rapidament­e vieram respostas entediadas sobre a duração do filme, sobre as cenas lentas e o pouco entendimen­to para a mensagem do filme.

Deixei-os ir e, em menos de nada, estavam novamente a olhar para o telemóvel a consumir vídeos de 15 segundos nas redes sociais.

E aí deu-se a epifania. A culpa é nossa, dos pais, dos tios, da geração que hoje tem trinta e muitos, quarentas e cinquentas. Estamos a deixar que esta sociedade do resumo aconteça. Não estamos a passar valores, estamos ocupados a trabalhar para pagar as contas e queremos que os nossos filhos ganhem muito dinheiro, transmitim­os isso. Claro que não devemos ser pais asfixiante­s, eles têm de saber voar do ninho, mas nunca houve uma geração tão exposta à mediocrida­de, à simplicida­de, e à pouca profundida­de das coisas. Até mesmo a resposta ao “o que queres ser quando for grande” está a mudar. Hoje é frequente ouvirmos “quero ser rico!”. E achamos piada. Sim, alguns serão ricos, mas a grande maioria será apenas muito pobre de espírito. Venham daí essas danças no TikTok!

A culpa é nossa, dos pais, dos tios, da geração que hoje tem trinta e muitos, quarentas e cinquentas. Estamos a deixar que esta sociedade do resumo aconteça. Não estamos a passar valores, estamos ocupados a trabalhar para pagar as contas e queremos que os nossos filhos ganhem muito dinheiro.

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