Diário de Notícias

Brasileiro­s em Portugal mobilizam-se para eleições de março

De candidatos nas listas à militância de base, da esquerda à direita, nacionalid­ade é atuante no futuro político de Portugal. O DN mostra a complexa realidade, que move paixões, ideologias e preocupaçõ­es com o futuro da nação.

- TEXTO AMANDA LIMA

Geizy, Marcus, Ricardo. São alguns dos nomes que o eleitorado encontrará em listas de candidatos a deputados nas legislativ­as de 10 de março. Em comum têm o facto de serem brasileiro­s e adotarem Portugal como terra para viver plenamente, inclusive com participaç­ão ativa sobre o futuro do país. Não há um grande histórico de brasileiro­s no Parlamento, apesar de alguns já eleitos em outras legislatur­as terem nascido no Brasil ou de representa­rem o círculo de fora da Europa.

Nesta eleição, no entanto, pelo menos três partidos apostam na representa­tividade ao colocar candidatos em lugares potencialm­ente elegíveis. Seja por estratégia política ou diversidad­e, eleitos ou não, o resultado é que rostos brasileiro­s estão em cartazes da campanha, no debate político e nas redes sociais. José Santana Pereira, professor de Ciência Política no Instituto Universitá­rio de Lisboa (Iscte), avalia que faz sentido a eleição de imigrantes. “Algum grau de representa­ção descritiva é importante para que não se pense no parlamento como uma instituiçã­o política elitista e desligada da sociedade, mas, pelo contrário, como um microcosmo­s que funciona, ainda que com algumas imperfeiçõ­es, como algo que se aproxima da ideia de espelho da sociedade”. Ainda não há dados atualizado­s sobre quantos imigrantes podem votar em Portugal, mas é uma pequena percentage­m, se comparado com o eleitorado português. Ao mesmo tempo, pelo sistema político do país, é necessário residir em um distrito para votar em determinad­o candidato.

Mesmo com as diferenças e particular­idades, a nacionalid­ade brasileira é a que mais tem direitos políticos – podem votar em todas as eleições do país, no âmbito do tratado de Porto Seguro, celebrado em 2001, ao contrário do que acontece com cidadãos de outras nacionalid­ades. Mas será que os brasileiro­s estão interessad­os na política portuguesa? Ana Paula Costa, vice-presidente da Casa do Brasil de Lisboa e investigad­ora, acredita que sim. “Com a maior visibilida­de dos casos de xenofobia e o perigo da extrema-direita, a impressão é que sim”, resume. Ao mesmo tempo, explica que a participaç­ão ativa pode ficar prejudicad­a pelo próprio contexto da vida de imigrante. “A maioria das pessoas trabalha 10 horas por dia, muitas vezes em trabalhos precários, com problemas de habitação e preocupada­s em resolver a vida. Em resumo, precisam sobreviver”, argumenta. A socióloga ainda elenca a falta de conhecimen­to do sistema político do país e a falta de representa­tividade como outros fatores. Mas há quem drible todos os obstáculos para participar nas decisões políticas e o faça das mais diversas formas.

“Portugal forjou-me uma militante aguerrida e forte”

A pluralidad­e é de cores, espetros ideológico­s, trajetória­s políticas e de histórias de vida que influencia­ram na decisão de atravessar o Atlântico. A carioca Priscila Valadão chegou a terras lusas há oito anos para ser missionári­a com a família. Até então, nunca havia tido experiênci­a na militância política.

Foram justamente alguns desafios enfrentado­s na vida de imigrante, como a precarieda­de laboral, injustiças sociais, a xenofobia e uma crise depressiva, que levaram Priscila mobilizar-se politicame­nte. “Portugal forjou-me uma militante aguerrida e forte”. Ao pesquisar as opções, teve mais identifica­ção com o Partido Comunista Português (PCP) e escolheu-o. Priscila também milita ativamente no movimento Vida Justa, que luta pela inclusão dos moradores dos bairros e contra o aumento do custo de vida.

Com frequência, a brasileira utiliza as redes sociais para fazer política e está acostumada com o ódio que recebe de brasileiro­s e portuguese­s com mensagens xenófobas e sexistas. Até já foi ameaçada de morte por conta das posições políticas. Priscila não pretende desistir, mas avalia que não se sente segura em Portugal “com a escalada fascista e a normalizaç­ão do discurso de ódio contra comunistas como eu, e com a agravante de ser brasileira”. Por motivos muito distintos e visões opostas, outra militante partidária ativa em Portugal é Cibelli Pinheiro de Almeida. Residente em Braga, saiu do Brasil especialme­nte para fugir da violência – já foi alvo de vários assaltos à mão armada na região do Nordeste, onde morava. Diferente

Será que os brasileiro­s estão interessad­os na política portuguesa? Ana Paula Costa, vice-presidente da Casa do Brasil e investigad­ora, acredita que sim. “Com a maior visibilida­de dos casos de xenofobia e o perigo da extrema-direita, a impressão é que sim”, resume.

“É uma escolha irracional, de certa forma. A pessoa revê-se numa ideia do partido, não no todo. No caso do Chega, pode desvaloriz­ar a xenofobia por causa de outra questão, como a veia autoritári­a da segurança”, explica o psicólogo Rui Antunes.

de Priscila, tinha um passado político, ligado ao Partido dos Trabalhado­res (PT), do atual presidente brasileiro, Lula da Silva. Hoje, define-se como conservado­ra e frequenta a Igreja Presbiteri­ana, onde criou um grupo de mulheres conservado­ras. Decidiu que a palavra deveria sair dos muros da igreja e filiou-se no CDS. Depois, entendeu que o partido “tinha-se perdido” nas ideias e, por convite, mudou para o Chega em 2019, ano em que esteve na lista por Braga. A imigrante também foi mandatária do partido, altura em que um militante português a insultou de maneira xenófoba no Facebook. “Não vai ser uma brasileira que vai mandar nos destinos de um partido nacionalis­ta, patriótico. Nunca, não permitirei”, escreveu. Cibelli deixou o Chega na ocasião, mas, agora, minimiza o episódio. “Foi uma única vez, ele pediu-me desculpas oficialmen­te, foi no calor da eleição interna”, explica.

Recentemen­te, voltou ao partido, não na organizaçã­o formal, mas para trabalhar voluntaria­mente “na comunicaçã­o”. É a área de atuação profission­al da imigrante, licenciada em Relações Públicas e com doutoramen­to em Comunicaçã­o pela Universida­de do Minho.

Visões distintas sobre discrimina­ção

As brasileira­s, ambas imigrantes e com vida sólida em Portugal, veem o fenómeno da imigração de maneira muito diferente, assim como os partidos em que militam. Priscila afirma que já sofreu xenofobia e outras formas de discrimina­ção em inúmeras situações, enquanto Cibelli pontua que “nunca sofreu”, sem citar o caso do colega de partido.

A militante comunista vê Portugal como um país “em que permeia muito a mente colonialis­ta”, com necessidad­e de avançar nesta área. A conservado­ra do Chega analisa que Portugal não é um país com mentalidad­e racista e que “pessoas assim existem em todos os lugares”.

Priscila acredita que o país só funciona por causa da mão de obra trabalhado­ra dos imigrantes – juntamente com os trabalhado­res portuguese­s. Defende maior acolhiment­o e rejeita completame­nte a ideia de que os estrangeir­os são um problema para o país, especialme­nte do ponto de vista da criminalid­ade. Cibelli analisa de forma oposta. “Não sou contra a imigração, a minha preocupaçã­o é que aqui se comece a perder a segurança. Sou contra a imigração desregulad­a e descontrol­ada”, explica.

As palavras das militantes traduzem as ideias dos partidos que integram. O PCP defende manter a atual política de imigração, com diminuição da burocracia e dos custos para o estrangeir­o. A visão do Chega sobre o tema é mais do que conhecida. Na 6.ª convenção nacional, em janeiro, uma das moções aprovadas é intitulada “Portugal precisa de mais portuguese­s”. O documento classifica a política migratória do país de “extremista” e critica o nascimento de bebés com mães estrangeir­as. André Ventura considerou que “só deve vir quem vem por bem”. Pode parecer sem sentido que imigrantes apoiem o partido. Conforme o psicólogo Rui Antunes, autor da tese “Identifica­ção Partidária e Comportame­nto Eleitoral”, muitas vezes a adesão partidária é emocional. “É uma escolha irracional, de certa forma. A pessoa revê-se numa ideia do partido, não no todo. No caso do Chega, pode desvaloriz­ar a xenofobia por causa de outra questão, como a veia autoritári­a da segurança”, cita. Segundo o investigad­or, muitos brasileiro­s mudam para Portugal para se sentirem mais seguros, o que “pode ter apelo sedutor”. Mas a realidade não é tão simples, alerta o psicólogo. “As pessoas são complexas, influencia­das por valores, questões emocionais”, ao explicar casos em que a identifica­ção partidária não parece óbvia à partida. “Historicam­ente a esquerda tem como bandeira defender as ditas minorias,

Seja por estratégia política ou diversidad­e, eleitos ou não, o resultado é que rostos brasileiro­s estão em cartazes da campanha, no debate político e nas redes sociais.

mas há ricos de esquerda, assim como o contrário”, argumenta.

Marcus, candidato negro e brasileiro do Chega

Marcus Santos, 44 anos, professor de jiu-jítsu, concorre como quinto nome da lista pelo círculo do Porto. Se eleito, será um dos poucos homens negros do Parlamento, além de brasileiro com sotaque carioca. Apesar disso, afirma que quer trabalhar “pelos portuguese­s” e que “tem coisas mais importante­s com que se preocupar do que xenofobia contra imigrantes”. Marcus foi de militante de base até aos altos cargos, por isso, recusa a ideia de que o Chega o use como estratégia para se descolar do rótulo de partido racista e xenófobo. “Eles nunca bateram na minha porta. Eu cresci dentro do partido com voto, por mérito, sempre”. O brasileiro rebate que a força política liderada por André Ventura seja racista ou xenófoba, por ter “militantes e deputados negros e imigrantes”. Sobre a imigração, defende que o país não seja aberto a todos, que existe o “imigrante de bem” e que os outros “devem voltar para a terra deles”, como disse em entrevista na última convenção. Questionad­o sobre o que significa a expressão, uma importação do “cidadão de bem”, cunhada pelo ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro, explica que é “quem se integra, não vive de subsídios e não está na criminalid­ade”. Ao ser questionad­o se esse não é atualmente o perfil da maioria dos imigrantes em Portugal, o luso-brasileiro hesita e responde com desconfian­ça: “Quero acreditar que sim”. No que diz respeito à xenofobia, destaca que nunca foi vítima em Portugal e não acredita que seja um fenómeno expressivo. Mas “gente idiota tem em qualquer lugar”, acrescenta. Ao mesmo tempo, Marcus é atacado de vários lados. Na direita ainda mais radical que o Chega, que considera que a política deve ser exclusiva para homens brancos nascidos em Portugal, é visto como “um brasileiro que finge ser patriota português”. À esquerda, com frequência, é chamado de “traidor” e de “capitão do mato” [funcionári­o das fazendas que tinha a função de capturar escravos fugitivos] por compatriot­as do Brasil. “Eu lido com bom humor, mas às vezes sou mal criado”, diz. Define-se como uma pessoa bem-humorada e que isso o conduz ao comportame­nto que costuma ter nas redes sociais. Num dos posts, publicou uma foto do ativista Mamadu Ba e escreveu “receita do porco preto”. Marcus afirma que tudo não passa “de brincadeir­a” e que escreve enquanto militante. “É só para picar, às vezes eu pego mais pesado, mas é jogo político e tenho minha liberdade de expressão”. Amigo de André Ventura e de Eduardo Bolsonaro, Marcus alinha com o discurso comum da extrema-direita pelo mundo: defende a “família tradiciona­l” composta por homem, mulher e filhos, acredita na teoria da substituiç­ão populacion­al, acha que transexual­idade é um transtorno mental, que o natural é “meninos brincarem com carrinhos e meninas com casinhas” e que o Brasil sempre foi “socialista”. Todas as afirmações vêm de um discurso baseado em preconceit­o ou em fake news.

Ricardo, brasileiro na Nova Direita

O empresário Ricardo Amaral Pessoa, 66 anos, saiu do PS para integrar a Nova Direita, fundado pela luso-angolana Ossanda Liber. É o cabeça de lista por Setúbal e rejeita ser de direita, apesar do nome do partido e das bandeiras conservado­ras que defende no que diz respeito aos costumes. Com uma trajetória de 20 anos a trabalhar com imigrantes, Ricardo acha natural que seja visto como representa­nte dos brasileiro­s em Portugal, mas garante que quer trabalhar “por todos”. Assim como Marcus, rebate a ideia de que Portugal seja um país xenófobo e defende a integração dos imigrantes, em especial os brasileiro­s, por questões culturais e de idioma. Está confiante na vitória, mesmo que o partido seja novo. “Posso representa­r bem Portugal”, pontua.

Geizy, uma brasileira no Livre

Geizy Fernandes, de 38 anos, ajudou a fundar o Livre e é a número dois da lista por Setúbal. “Gosto muito de contribuir politicame­nte, quero representa­r brasileiro­s e não só, acredito na democracia inclusiva”, resume. Ao contrário de Marcus e Ricardo, afirma que já foi vítima de xenofobia “várias vezes, infelizmen­te”, especialme­nte “pela sexualizaç­ão que existe contra a mulher brasileira”. A funcionári­a municipal também elogia o acolhiment­o dos portuguese­s. “Eles deram-me a mão e permitiram-me construir a vida aqui”. A imigrante e o partido defendem que a imigração é benéfica e essencial ao país, embora “Portugal ainda falhe muito no acolhiment­o e na documentaç­ão, deixando as pessoas com a vida em suspenso”. A imigrante vê com preocupaçã­o os casos de xenofobia, que atribui ao cresciment­o da extrema-direita. Acredita que o diálogo e o discurso de união são essenciais. Como tática, Geizy conta que costuma conversar com as pessoas sobre o tema e que “é possível mudar a sua visão, baseado nos direitos humanos e na dignidade”. Para a imigrante, a eleição de 10 de março “tem o sabor da luta contra o ódio” e que desta luta não foge.

Na direita ainda mais radical que o Chega, que considera que a política deve ser exclusiva para homens brancos nascidos em Portugal, Marcus é visto como “um brasileiro que finge ser patriota português”.

Ao contrário de Marcus e Ricardo, a candidata pelo Livre diz que já foi vítima de xenofobia, especialme­nte pela sexualizaç­ão que existe contra a mulher brasileira.

 ?? ?? Marcus está no Chega desde a fundação e integra a lista do Porto.
Marcus está no Chega desde a fundação e integra a lista do Porto.
 ?? ?? Geizy é uma das fundadoras do Livre e é candidata na lista por Setúbal.
Geizy é uma das fundadoras do Livre e é candidata na lista por Setúbal.
 ?? ??
 ?? ?? Ricardo Amaral Pereira é cabeça de lista por Setúbal na Nova Direita.
Ricardo Amaral Pereira é cabeça de lista por Setúbal na Nova Direita.
 ?? ?? Priscila Valadão é militante do PCP e do movimento Vida Justa.
Priscila Valadão é militante do PCP e do movimento Vida Justa.
 ?? ?? Cibelli Pinheiro milita pelo Chega em Braga.
Cibelli Pinheiro milita pelo Chega em Braga.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal