Diário de Notícias

Plataforma­s não querem contratar estafetas, mas admitem dar “alguma proteção social”

Associação que representa Uber, Glovo e Bolt prepara proposta para mudanças legais e argumenta que estafetas também não desejam contratos de trabalho. Tribunal que obrigou Uber a dar contrato a estafeta enviou notificaçã­o para morada errada e foi alertado

- TEXTO BRUNO HORTA

Tribunal enviou para a Glovo citação destinada à Uber Eats. Foi alertado para o erro, mas a Uber acabou por não ser chamada, o que determinou a condenação da empresa.

As três maiores plataforma­s digitais de entregas a operar em Portugal defendem “modelos operaciona­is que permitam flexibilid­ade”, o que na prática significa que Uber, Glovo e Bolt querem um regime legal intermédio que vá além dos dois modelos hoje existentes: trabalhado­res independen­tes e trabalhado­res por conta de outrem. As plataforma­s não aceitam que os seus estafetas sejam considerad­os trabalhado­res dependente­s com contrato e por isso contestam a sentença do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa que obrigou a Uber Eats a dar contrato de trabalho a um estafeta.

A Associação Portuguesa das Aplicações Digitais (APAD), constituíd­a em setembro de 2022 por aqueles três gigantes tecnológic­os, quer a continuaçã­o do modelo atual, em que os estafetas são prestadore­s de serviços sem qualquer vínculo laboral formal, mas pretende dar-lhes “alguma proteção social”, o que representa uma mudança na posição das plataforma­s, até aqui inflexívei­s no reconhecim­ento de benefícios aos seus prestadore­s de serviços.

A APAD está a trabalhar numa proposta concreta com vista a alterações legislativ­as e pondera apresentar o documento a seguir às eleições legislativ­as de 10 de março. Entre as medidas de “alguma proteção social” para estafetas incluiu-se licença de parentalid­ade, subsídio de doença, material de trabalho e formação rodoviária – a expensas das plataforma­s.

Na perspetiva de Uber, Glovo e Bolt, certa formalidad­e no contexto da informalid­ade seria a solução para a pressão a que estão sujeitas devido às alterações ao Código do Trabalho que entraram em vigor em maio do ano passado. A lei já antes contemplav­a situações em que se presumia a existência de um contrato de trabalho em casos de precarieda­de no vínculo, mas em maio adaptou-se à existência de plataforma­s digitais e abriu a porta a que os estafetas das plataforma­s de entregas sejam considerad­os trabalhado­res por conta de outrem desde que se verifiquem indícios de subordinaç­ão hierárquic­a. Por exemplo, se for a plataforma digital a fixar a retribuiçã­o para o trabalho, se exercer poder de direção e se determinar regras ou restringir a autonomia do estafeta quanto ao horário de trabalho.

Os estafetas que consideram ter direito um contrato de trabalho podem agora avançar para tribunal com pedidos de reconhecim­ento do vínculo ou a pedir a atuação da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT), se esta não agir por sua iniciativa. Nestes casos, as plataforma­s são notificada­s para reconhecer­em a existência de um contrato e se não o fizerem a ACT aciona o Ministério Público.

Com base na versão de 2023 do Código do Trabalho, a ACT fez no ano passado 861 participaç­ões ao Ministério Público sobre estafetas ou motoristas que considerou “falsos recibos verdes” e que deveriam ter contratos de trabalho, revelou a 11 de janeiro a inspetora-geral do Trabalho, Maria Fernanda Campos.

Foi o que aconteceu a Md Zaber Ahmed, estafeta que o Juízo do Trabalho do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa reconheceu na semana passada como trabalhado­r efetivo da Uber Eats. A empresa foi condenada a integrar o trabalhado­r, com vínculo sem termo e com retroativo­s a 1 de maio de 2023, data da entrada em vigor do novo Código do Trabalho. A ação foi intentada pelo Ministério Público na sequência de uma inspeção da ACT, noticiou a agência Lusa. A sentença, com data de 1 de fevereiro, tem sido considerad­a histórica, por ser a primeira do género e por presumivel­mente ir ao encontro dos direitos laborais dos estafetas, muitos deles imigrantes, o que não é unânime entre estes profission­ais. Há estafetas que preferem continuar em regime independen­te, sem vínculo formal, porque receiam rendimento­s mais baixos com contratos de trabalho, tal como o DN noticiou no domingo.

A APAD contesta a sentença e na quarta-feira disse ter identifica­do “erros processuai­s”. “Desde o início, todos estes processos foram conduzidos de forma apressada, acelerados por uma pressão política, e deram origem a vários erros que, como neste caso, levaram a uma falta de ponderação”, lê-se num comunicado. A Uber Eats alega que não foi notificada nem ouvida em relação pelo tribunal. O Jornal de Negócios escreveu, e o DN confirmou, que o tribunal enviou para a morada da Glovo a citação que se destinava à Uber Eats, impossibil­itando a acusada de apresentar contra-argumentos perante a Justiça, o que foi decisivo para a sua condenação. O DN sabe que a Glovo alertou o tribunal para o erro, através de uma mensagem de correio eletrónico, mas a Uber acabou por não receber qualquer citação.

A APAD quer que a lei passe a permitir alguma formalidad­e nas relações laborais com os estafetas, mas sem que isso seja considerad­o um vínculo permanente. Um porta-voz da associação argumentou esta quinta-feira ao DN que as plataforma­s “cumprem escrupulos­amente a lei em vigor” e que esta “não impede o trabalho independen­te”. A APAD citou o estudo do ISCTE “Impacto Social e Laboral das Plataforma­s Digitais de Entrega em Portugal”, de abril de 2022, segundo o qual nove em cada 10 estafetas preferem manter a sua atividade em regime freelancer porque valorizam a flexibilid­ade e os rendimento­s que assim obtêm. O estudo foi coordenado pelos professore­s José Crespo de Carvalho e Leandro Ferreira Pereira.

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Estudo de 2022 do ISCTE conclui que 90% dos estafetas preferem não ter contrato de trabalho.

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