Plataformas não querem contratar estafetas, mas admitem dar “alguma proteção social”
Associação que representa Uber, Glovo e Bolt prepara proposta para mudanças legais e argumenta que estafetas também não desejam contratos de trabalho. Tribunal que obrigou Uber a dar contrato a estafeta enviou notificação para morada errada e foi alertado
Tribunal enviou para a Glovo citação destinada à Uber Eats. Foi alertado para o erro, mas a Uber acabou por não ser chamada, o que determinou a condenação da empresa.
As três maiores plataformas digitais de entregas a operar em Portugal defendem “modelos operacionais que permitam flexibilidade”, o que na prática significa que Uber, Glovo e Bolt querem um regime legal intermédio que vá além dos dois modelos hoje existentes: trabalhadores independentes e trabalhadores por conta de outrem. As plataformas não aceitam que os seus estafetas sejam considerados trabalhadores dependentes com contrato e por isso contestam a sentença do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa que obrigou a Uber Eats a dar contrato de trabalho a um estafeta.
A Associação Portuguesa das Aplicações Digitais (APAD), constituída em setembro de 2022 por aqueles três gigantes tecnológicos, quer a continuação do modelo atual, em que os estafetas são prestadores de serviços sem qualquer vínculo laboral formal, mas pretende dar-lhes “alguma proteção social”, o que representa uma mudança na posição das plataformas, até aqui inflexíveis no reconhecimento de benefícios aos seus prestadores de serviços.
A APAD está a trabalhar numa proposta concreta com vista a alterações legislativas e pondera apresentar o documento a seguir às eleições legislativas de 10 de março. Entre as medidas de “alguma proteção social” para estafetas incluiu-se licença de parentalidade, subsídio de doença, material de trabalho e formação rodoviária – a expensas das plataformas.
Na perspetiva de Uber, Glovo e Bolt, certa formalidade no contexto da informalidade seria a solução para a pressão a que estão sujeitas devido às alterações ao Código do Trabalho que entraram em vigor em maio do ano passado. A lei já antes contemplava situações em que se presumia a existência de um contrato de trabalho em casos de precariedade no vínculo, mas em maio adaptou-se à existência de plataformas digitais e abriu a porta a que os estafetas das plataformas de entregas sejam considerados trabalhadores por conta de outrem desde que se verifiquem indícios de subordinação hierárquica. Por exemplo, se for a plataforma digital a fixar a retribuição para o trabalho, se exercer poder de direção e se determinar regras ou restringir a autonomia do estafeta quanto ao horário de trabalho.
Os estafetas que consideram ter direito um contrato de trabalho podem agora avançar para tribunal com pedidos de reconhecimento do vínculo ou a pedir a atuação da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT), se esta não agir por sua iniciativa. Nestes casos, as plataformas são notificadas para reconhecerem a existência de um contrato e se não o fizerem a ACT aciona o Ministério Público.
Com base na versão de 2023 do Código do Trabalho, a ACT fez no ano passado 861 participações ao Ministério Público sobre estafetas ou motoristas que considerou “falsos recibos verdes” e que deveriam ter contratos de trabalho, revelou a 11 de janeiro a inspetora-geral do Trabalho, Maria Fernanda Campos.
Foi o que aconteceu a Md Zaber Ahmed, estafeta que o Juízo do Trabalho do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa reconheceu na semana passada como trabalhador efetivo da Uber Eats. A empresa foi condenada a integrar o trabalhador, com vínculo sem termo e com retroativos a 1 de maio de 2023, data da entrada em vigor do novo Código do Trabalho. A ação foi intentada pelo Ministério Público na sequência de uma inspeção da ACT, noticiou a agência Lusa. A sentença, com data de 1 de fevereiro, tem sido considerada histórica, por ser a primeira do género e por presumivelmente ir ao encontro dos direitos laborais dos estafetas, muitos deles imigrantes, o que não é unânime entre estes profissionais. Há estafetas que preferem continuar em regime independente, sem vínculo formal, porque receiam rendimentos mais baixos com contratos de trabalho, tal como o DN noticiou no domingo.
A APAD contesta a sentença e na quarta-feira disse ter identificado “erros processuais”. “Desde o início, todos estes processos foram conduzidos de forma apressada, acelerados por uma pressão política, e deram origem a vários erros que, como neste caso, levaram a uma falta de ponderação”, lê-se num comunicado. A Uber Eats alega que não foi notificada nem ouvida em relação pelo tribunal. O Jornal de Negócios escreveu, e o DN confirmou, que o tribunal enviou para a morada da Glovo a citação que se destinava à Uber Eats, impossibilitando a acusada de apresentar contra-argumentos perante a Justiça, o que foi decisivo para a sua condenação. O DN sabe que a Glovo alertou o tribunal para o erro, através de uma mensagem de correio eletrónico, mas a Uber acabou por não receber qualquer citação.
A APAD quer que a lei passe a permitir alguma formalidade nas relações laborais com os estafetas, mas sem que isso seja considerado um vínculo permanente. Um porta-voz da associação argumentou esta quinta-feira ao DN que as plataformas “cumprem escrupulosamente a lei em vigor” e que esta “não impede o trabalho independente”. A APAD citou o estudo do ISCTE “Impacto Social e Laboral das Plataformas Digitais de Entrega em Portugal”, de abril de 2022, segundo o qual nove em cada 10 estafetas preferem manter a sua atividade em regime freelancer porque valorizam a flexibilidade e os rendimentos que assim obtêm. O estudo foi coordenado pelos professores José Crespo de Carvalho e Leandro Ferreira Pereira.