Rodrigo Areias “A irmandade artística é um conceito em que me revejo”
Radicado em Guimarães, Rodrigo Areias continua a diversificar a sua trajetória criativa. Com produção de Paulo Branco, o seu novo filme, O Pior Homem de Londres (em exibição), leva-o a revisitar os protagonistas do movimento Pré-Rafaelita e, em particular
Na nota de intenções de O Pior Homem de Londres, escreveste que sempre admiraste a arte dos Pré-Rafaelitas. E acrescentas: “A insistência em criarem um movimento de reforma, mesmo que não vanguardista, defendendo a arte pela arte ainda no século XIX, a partir da apropriação do passado, é algo de que muito gosto e, de certa maneira, uma recorrência no meu cinema. Revejo-me no princípio da apropriação de géneros ou estilos de um outro tempo transpostos para os dias de hoje.” Quer isto dizer o teu cinema, noutros casos assumidamente experimental, quer manter uma relação com o passado, ou algumas formas do passado? É o meu lado cinéfilo. Tem que ver com o fascínio do cinema, com a vontade de fazer, por exemplo, um western [Estrada de Palha, 2012], um filme noir [Ornamento e Crime, 2015]… é a vontade de querer participar em toda a história do cinema, como se isso fosse possível. Neste caso, tratava-se de revisitar outro “género” que não seria, para mim, uma prioridade, mas que me deu imenso prazer. Com tudo o que isso implica de estudar e pesquisar sobre um determinado assunto – isso motiva-me imenso, a possibilidade de experimentar novas formas de fazer cinema interessa-me sempre. O meu sonho era fazer filmes de caravelas, histórias medievais… mas como isso não é possível, vou fazendo o que posso [riso].
Neste caso, o passado é, antes do mais, a pintura dos Pré-Rafaelitas. De que modo essa referência determinou a conceção do filme? Aquilo que me fascina nos Pré-Rafaelitas é, antes do mais, o lado tribal, a irmandade artística que formavam, um conceito no qual me revejo. Depois, há a tentativa de criar algo coletivo, o que acaba por não ser possível, uma vez que cada artista é um artista, cada forma de fazer pintura (ou cinema) é diferente de qualquer outra forma: os Pré-Rafaelitas começam mesmo por tentar abolir a assinatura individual, mas cedo se apercebem que tal não é possível – é uma dimensão utópica em que também me revejo.
Mas a pintura permanece…
A pintura em si varia de pintor para pintor, mas há um gosto do pormenor e uma beleza clássica que são aspetos que me atraem. Ao mesmo tempo, a própria história leva à omissão dos Pré-Rafaelitas, já que logo a seguir surge o Impressionismo, movimento que iria mudar a história da arte – os Pré-Rafaelitas estão ali mesmo no fim de tudo isso…
O português Charles Augustus Howell, interpretado por Albano Jerónimo, é aquele que tem um comportamento, no mínimo, pragmático em relação ao valor que a obra de arte pode ter. Como é que o filme aborda essa relação, afinal eterna, da arte e do comércio?
Enquanto produtor, eu tenho uma visão muito simples, muito pragmática do assunto. Na verdade, a função que Howell se propõe assumir é garantir que o seu amigo Dante Gabriel Rossetti [Edward Ashley] tenha condições para produzir arte. Isto independentemente do estado em que ele esteja. Há poucos dias, no Festival de Roterdão, tive essa discussão com o público, motivada por uma pergunta muito direta sobre a patologia de que Howell sofreria. Muito calmamente, respondi que algumas culturas terão dificuldade em entendê-lo, mas eu, enquanto português, consigo. Ou seja: consigo entender alguém que é capaz de tudo para ajudar o próximo, ao mesmo tempo que tem uma incapacidade cultural de acumulação de riqueza. Mesmo quando convence a sua amante, Rosa Corder [Vera Moura], a falsificar desenhos de Rossetti, estou convencido que não é para enriquecimento próprio…
Howell é, então, uma personagem contraditória?
Era importante que o filme fosse suficientemente dúbio em relação a Howell – na minha perspectiva, há ali uma motivação que nem sempre é errada. Pesquisando a sua correspondência, é notório que está a ajudar Rossetti, e também que Rossetti está a entrar num acelerado processo de autodestruição. Sabemos que aquela elite londrina fez quadruplicar a importação de opiáceos; Howell ajuda-os, mas não os instiga ao consumo – para mim, era importante não o demonizar. Encontramos assim uma teia de personagens masculinas, mas Li
“Na região do Porto, onde quase todo o filme foi rodado, deparei com uma comunidade anglófona muito maior e menos conhecida do que estava à espera.”
zzie Siddal [Victoria Guerra] está longe de ser uma figura secundária. Sim, é um facto que encontramos também nos Pré-Rafaelitas uma dimensão de emancipação feminina que antecede todo o movimento sufragista. À época, a “Pre-Raphaelite Sisterhood” afirma-se como um fenómeno contracultura, contra as convenções vitorianas, no sentido de as mulheres se emanciparem e criarem arte. A própria vivência de Rossetti e Lizzie Siddal na mesma casa, pré-matrimonial, era qualquer coisa de revolucionário.
Em termos de produção, podemos aplicar a O Pior Homem de Londres o velho cliché do “filme de reconstituição histórica”. Ora, sabendo das limitações dos nossos meios, como é que lidaste, precisamente, com as questões de produção?
Em boa verdade, de forma muito simples. Aquilo que propus ao Paulo Branco foi que filmássemos num sítio onde nos sentíssemos confortáveis, onde, por assim dizer, pudéssemos jogar em casa para fazermos face às limitações normais no cinema português. Além do mais, a minha experiência de filmar em Londres não era muito positiva, sabia do nível de burocracia que um filme desta natureza implicaria. Na verdade, na região do Porto, onde quase todo o filme foi rodado, deparei com uma comunidade anglófona muito maior e menos conhecida do que estava à espera, e também com muito mais edifícios e palacetes vitorianos, igrejas e cemitérios ingleses daquela época – depois, com o Ricardo Preto, foi feito um trabalho muito depurado de cenografia. Também nessa perspectiva, como foi o trabalho de Susana Abreu e Jorge Quintela, respetivamente no guarda-roupa e na fotografia? Por certo algo diferente dos teus filmes anteriores…
Sim, sem dúvida, ainda que sejam as mesmas pessoas [riso]. É uma relação de trabalho com mais de vinte anos! Além disso, sendo o Paulo Branco o produtor, também foi importante ele ter percebido que essas pessoas seriam uma mais-valia para o filme. Na verdade, são três “parceiros de crime” do meu trajeto, vêm da mesma escola que eu. Ou seja: como criar alguma coisa quando não há meios para a fazer… A partir do momento em que temos um pouco mais de meios, o resultado é naturalmente mais apurado. Nesse sentido, por exemplo, aquilo que a Susana pediu ao Paulo foi que pudesse fazer de raiz todo o guarda-roupa das personagens principais. Até porque, no caso do Howell, a sua personalidade está também no guarda-roupa: as descrições históricas que temos dele dizem mesmo que quando chegava a uma festa, era como se a luz fosse atrás dele, roubava a atenção a toda a gente – o cuidado foi extremo, a ponto de se terem fabricado os sapatos que usa no filme... Sem esquecer, já agora, a música original do Samuel Martins Coelho que adaptou o seu violino com umas cordas mais grossas para conseguir um som muito particular, adequado à orgânica do filme.
E como foi desenvolvido o argumento do Eduardo Brito? Começou por ser um objeto acabado a partir do qual se fez esse trabalho de preparação e produção, ou o próprio argumento foi-se adaptando às condições práticas de realização do filme?
O trabalho com o Eduardo é sempre um processo longo de discussão e pesquisa – mando-lhe fotografias, livros com partes sublinhadas… E encontramo-nos muitas vezes, normalmente entre as oito e um quarto e as nove e meia da manhã, num cafezinho por baixo da casa do Eduardo, em frente ao estádio do Vitória de Guimarães…
Qual o saldo da passagem do filme no Festival de Roterdão? Tivemos reações muito positivas, sobretudo da parte de programadores e críticos. O filme tem já estreia prevista em diversos territórios, o que será confirmado agora no Mercado de Berlim. O tal lado cinéfilo leva as pessoas a reverem-se no filme… enfim, as que se reveem. Bem sei que não faço filmes à velocidade dos dias de hoje, mas também não é minha intenção fazê-lo. É normal e compreensível que haja quem não queira entrar nas viagens cinematográficas que tenho para propor – está tudo bem.