Diário de Notícias

Charles Augustus Howell, homem de qualidades

Não é um filme para se conhecer um português londrino do século XIX, mas para lhe seguir os passos sinuosos através de um ator no ponto: Albano Jerónimo. O Pior Homem de Londres cruza os caminhos da pintura e da verve literária. Filho de pai inglês e mãe

- TEXTO INÊS N. LOURENÇO

W “atson, sabe aquela sensação de arrepio quando estamos diante das serpentes no jardim zoológico e vemos as criaturas venenosas, escorregad­ias e deslizante­s, com os seus olhos letais e rostos achatados e perversos? Bem, é isso que me impression­a em Milverton. Já tive de me relacionar com cinquenta assassinos ao longo da minha carreira, mas o pior deles nunca me causou a repulsa que sinto por este indivíduo. E ainda assim, não consigo deixar de fazer negócios com ele.” Eis como descreve Sherlock Holmes os seus sentimento­s para com Charles Augustus Milverton, vilão irresistív­el de uma das aventuras do detetive – porém, não circunscri­to ao universo literário de Sir Arthur Conan Doyle. Terá sido em Charles Augustus Howell (1840-1890) que o autor inglês se inspirou para criar essa personagem... e tão deliciosa comparação com os répteis. Uma personagem que por estes dias enche de vida ambígua o grande ecrã, no filme O Pior Homem de Londres; por sinal, uma expressão do próprio Conan Doyle.

Ao mergulhar no ambiente do círculo Pré-Rafaelita (Londres, segunda metade do século XIX), o filme de Rodrigo Areias explora as cores desta figura que, sendo real, se pôs a jeito da ficção. Nascido na cidade invicta, filho de pai inglês e mãe portuguesa, Charles Augustus Howell tem dois ou três factos no currículo que sustentam toda a ideia da sua existência: foi secretário do crítico de arte John Ruskin, tornou-se agente do pintor e poeta Dante Gabriel Rossetti, e, qual episódio extravagan­te, assumiu um papel crucial na exumação da artista Lizzie Siddal, com o objetivo de reaver os poemas que Rossetti teria colocado no caixão dessa sua amada...

De resto, o aristocrát­ico Howell moveu-se (serpenteou?) pela cena artística da Inglaterra vitoriana de uma forma ágil, sem sombra de embaraço, levando muitos contemporâ­neos a interpreta­rem a sua postura como algo assente numa patológica falta de escrúpulos.

Seria mentiroso e manipulado­r, como rezam as crónicas? Em vez de confirmar ou contrariar essa dúvida, O Pior Homem de Londres vem dar-nos o prazer da pose de uma personagem que, na composição de Albano Jerónimo, se apresenta como um “texto” brilhante, cheio de camadas e mistério lúdico, a sinalizar o vício daquela atmosfera de época. Aqui no pico das suas virtudes, o ator dá-se a ler pela graça de cada gesto, olhar, testa franzida ou linha de diálogo, como se saltasse, em simultâneo, de uma pintura e da página de um policial.

É a esse duplo encantamen­to que o filme de Areias vai buscar uma vibração discreta mas efetiva, sempre no equilíbrio do cuidado da imagem com um gosto literário subterrâne­o. O que nos reenvia para o espírito da letra de Conan Doyle, bem captado pelo argumento de Eduardo Brito, que persegue a sinuosidad­e interior da figura de Howell, enquanto a câmara se fixa nos seus movimentos labiríntic­os, pincelados e de humanidade astuta. Se foi o pior homem de uma Londres de bons costumes, pouco importa. Mas que é uma apelativa personagem de corpo inteiro, disso não há dúvidas.

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Albano Jerónimo: cada linha de expressão conta.

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