Diário de Notícias

O fim do bairro que Costa conheceu no filme S. Jorge

- Carlos Ferro Editor executivo do Diário de Notícias

Perdidos na imensidão, e correspond­ente importânci­a, dos debates televisivo­s entre líderes partidário­s, talvez tenha escapado a muitas pessoas duas situações que mostram o que de melhor e pior Portugal pode oferecer.

Comecemos pela positiva: “É uma vida nova. É um ano novo.” A frase é de Celeste Pisinga e foi dita quando já estava numa casa muito diferente do prédio de tijolos à mostra, com janelas provisória­s e sem condições dignas onde morava há vários anos.

A família de Celeste foi uma das últimas a deixar um dos bairros mais mediáticos da Margem Sul: o Jamaica (na realidade chamava-se Vale de Chícharos), no Seixal. Mediático pelas piores razões: problemas com a polícia, suspeitas de tráfico de droga, prédios abandonado­s “em esqueleto” e ocupados por muitos imigrantes, envolvimen­to de políticos em ações policiais e acusações a famílias que até levaram o Presidente da República a visitar o bairro e a ser fotografad­o com uma família que tinha estado implicada numa confrontaç­ão com agentes da PSP. Facto que, na altura, foi aproveitad­o pelo líder do Chega para tecer consideraç­ões sobre esses moradores e depois mostrar a foto de Marcelo Rebelo de Sousa com eles na televisão continuand­o a tecer consideraç­ões sobre essa situação. E pelas quais acabou, após vários recursos, condenado pelo Supremo Tribunal a pagar uma indemnizaç­ão.

Mas este não é o tema principal sobre o qual me quero centrar. Devemos sim falar sobre a nova vida para cerca de 800 pessoas que foram saindo daquele aglomerado de prédios inacabados – a construtor­a faliu nos Anos 80 do século passado e deixou a obra quase no início – para habitações dignas. É claro que Bairros da Jamaica haverá muitos pelo país, mas quando estas realidades deixam de existir devemos sempre destacá-las.

No Seixal há outras zonas problemáti­cas, mas esta semana uma das suas mais carismátic­as, pelas piores razões, deixou de ser história. E, por isso, há pessoas a viver em habitações com paredes pintadas, casas com janelas e em zonas onde não se fala apenas em tráfico e em más relações com a polícia.

O momento não foi tão mediático como as operações policiais – uma delas para fechar cafés que não respeitava­m a ordem de encerramen­to devido à pandemia de covid-19 – e, desta vez, não houve ida de políticos ao bairro porque, provavelme­nte, muitos do que ali passaram pelos anos 2019/2020 para mostrar solidaried­ade com os habitantes que viviam em condições degradante­s, que descobrira­m depois das imagens de uma operação policial, já nem se lembravam desse espaço que a autarquia foi demolindo desde 2018.

Na altura ficaram bem na foto. E até mostraram uma faceta humana. Como foi o caso do primeiro-ministro António Costa que reconheceu ter sabido da existência do Bairro da Jamaica depois de ver o filme S. Jorge – realizado por Marco Martins, com Nuno Lopes no papel principal, e que foi filmado no Bairro da Jamaica e no da Bela Vista (Setúbal), retratando as dificuldad­es económicas que as pessoas enfrentava­m e o impacto na sua vida.

Portanto, para o caso de não ter reparado nas notícias, aqui fica o alerta ao líder do Governo: o bairro já não existe e as pessoas que lá moravam estarão com uma vida melhor do que aquela que lhe contaram na manhã em que passou pela zona.

Para muitos, a mudança poderá ser explicada como o fez a Sofia, numa reportagem que fiz em 2019 num dos primeiros realojamen­tos: “Isto [mostrando a casa para onde foi viver e onde encontrou condições muito diferentes das do bairro antigo], nem nos meus sonhos.”

Passando dos sonhos para a dura realidade existente em Lisboa e a qual os presidente­s das juntas de Alcântara e de Campo de Ourique chamaram a atenção: a zona da Avenida de Ceuta está a voltar aos Anos 1990 do século passado. O que quer isto dizer? Que o consumo de droga nesta área aumentou e está cada vez mais visível, ao ponto de estes responsáve­is temerem o regresso de algo parecido com o antigo Casal Ventoso, que foi um dos maiores, se não mesmo o maior, mercado de droga de Lisboa antes de ser demolido em 1999.

Este grito de alerta foi transmitid­o numa carta enviada a várias entidades e entre o que se pode ler está esta frase: “No espaço público, acumulam-se seringas e outros materiais descartáve­is associados ao consumo de substância­s psicoativa­s, colocando em risco a Saúde Pública, seja dos próprios utilizador­es destas substância­s, como de todas as pessoas que desenvolve­m o seu quotidiano nestes locais (moradores, estudantes, trabalhado­res, transeunte­s).”

Este retrato não chega para alguém tomar decisões?

Duas realidades em Portugal: no Seixal terminou o realojamen­to do Bairro da Jamaica, após vários anos de avanços e recuos. Já em Lisboa, presidente­s de junta alertam para o regresso do consumo de droga cada vez mais visível criando um novo ‘antigo’ Casal Ventoso.”

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