O fim do bairro que Costa conheceu no filme S. Jorge
Perdidos na imensidão, e correspondente importância, dos debates televisivos entre líderes partidários, talvez tenha escapado a muitas pessoas duas situações que mostram o que de melhor e pior Portugal pode oferecer.
Comecemos pela positiva: “É uma vida nova. É um ano novo.” A frase é de Celeste Pisinga e foi dita quando já estava numa casa muito diferente do prédio de tijolos à mostra, com janelas provisórias e sem condições dignas onde morava há vários anos.
A família de Celeste foi uma das últimas a deixar um dos bairros mais mediáticos da Margem Sul: o Jamaica (na realidade chamava-se Vale de Chícharos), no Seixal. Mediático pelas piores razões: problemas com a polícia, suspeitas de tráfico de droga, prédios abandonados “em esqueleto” e ocupados por muitos imigrantes, envolvimento de políticos em ações policiais e acusações a famílias que até levaram o Presidente da República a visitar o bairro e a ser fotografado com uma família que tinha estado implicada numa confrontação com agentes da PSP. Facto que, na altura, foi aproveitado pelo líder do Chega para tecer considerações sobre esses moradores e depois mostrar a foto de Marcelo Rebelo de Sousa com eles na televisão continuando a tecer considerações sobre essa situação. E pelas quais acabou, após vários recursos, condenado pelo Supremo Tribunal a pagar uma indemnização.
Mas este não é o tema principal sobre o qual me quero centrar. Devemos sim falar sobre a nova vida para cerca de 800 pessoas que foram saindo daquele aglomerado de prédios inacabados – a construtora faliu nos Anos 80 do século passado e deixou a obra quase no início – para habitações dignas. É claro que Bairros da Jamaica haverá muitos pelo país, mas quando estas realidades deixam de existir devemos sempre destacá-las.
No Seixal há outras zonas problemáticas, mas esta semana uma das suas mais carismáticas, pelas piores razões, deixou de ser história. E, por isso, há pessoas a viver em habitações com paredes pintadas, casas com janelas e em zonas onde não se fala apenas em tráfico e em más relações com a polícia.
O momento não foi tão mediático como as operações policiais – uma delas para fechar cafés que não respeitavam a ordem de encerramento devido à pandemia de covid-19 – e, desta vez, não houve ida de políticos ao bairro porque, provavelmente, muitos do que ali passaram pelos anos 2019/2020 para mostrar solidariedade com os habitantes que viviam em condições degradantes, que descobriram depois das imagens de uma operação policial, já nem se lembravam desse espaço que a autarquia foi demolindo desde 2018.
Na altura ficaram bem na foto. E até mostraram uma faceta humana. Como foi o caso do primeiro-ministro António Costa que reconheceu ter sabido da existência do Bairro da Jamaica depois de ver o filme S. Jorge – realizado por Marco Martins, com Nuno Lopes no papel principal, e que foi filmado no Bairro da Jamaica e no da Bela Vista (Setúbal), retratando as dificuldades económicas que as pessoas enfrentavam e o impacto na sua vida.
Portanto, para o caso de não ter reparado nas notícias, aqui fica o alerta ao líder do Governo: o bairro já não existe e as pessoas que lá moravam estarão com uma vida melhor do que aquela que lhe contaram na manhã em que passou pela zona.
Para muitos, a mudança poderá ser explicada como o fez a Sofia, numa reportagem que fiz em 2019 num dos primeiros realojamentos: “Isto [mostrando a casa para onde foi viver e onde encontrou condições muito diferentes das do bairro antigo], nem nos meus sonhos.”
Passando dos sonhos para a dura realidade existente em Lisboa e a qual os presidentes das juntas de Alcântara e de Campo de Ourique chamaram a atenção: a zona da Avenida de Ceuta está a voltar aos Anos 1990 do século passado. O que quer isto dizer? Que o consumo de droga nesta área aumentou e está cada vez mais visível, ao ponto de estes responsáveis temerem o regresso de algo parecido com o antigo Casal Ventoso, que foi um dos maiores, se não mesmo o maior, mercado de droga de Lisboa antes de ser demolido em 1999.
Este grito de alerta foi transmitido numa carta enviada a várias entidades e entre o que se pode ler está esta frase: “No espaço público, acumulam-se seringas e outros materiais descartáveis associados ao consumo de substâncias psicoativas, colocando em risco a Saúde Pública, seja dos próprios utilizadores destas substâncias, como de todas as pessoas que desenvolvem o seu quotidiano nestes locais (moradores, estudantes, trabalhadores, transeuntes).”
Este retrato não chega para alguém tomar decisões?
Duas realidades em Portugal: no Seixal terminou o realojamento do Bairro da Jamaica, após vários anos de avanços e recuos. Já em Lisboa, presidentes de junta alertam para o regresso do consumo de droga cada vez mais visível criando um novo ‘antigo’ Casal Ventoso.”