Traficante de sonhos António Brito Guterres
A25 de Novembro último, o discurso de Montenegro no encerramento do Congresso do PSD foi celebrado pelos comentadores de prime time (a grande maioria de direita) dos espaços noticiosos do país, como o grande momento da carreira política do líder do PSD.
Opinião unânime. Finalmente o presidente do PSD mostrou que pode verdadeiramente aspirar a ser primeiro-ministro.
Destacaram a preparação do discurso, a apresentação de propostas – algumas até sociais, a humilde análise à sua recente menor prestação política e, até, o elogio que fez a uma política do Partido Socialista: o sucessivo aumento do salário mínimo.
De todo o discurso, sugeriu-se um incidente: o momento em que Luís Montenegro disse: “Não somos cristãos-novos, somos cristãos por convicção.” O comentariado geral destacou que se tratou apenas de uma metáfora, de um erro de um homem normal.
Ora, homem normal, autêntico, é mesmo a construção em que o líder do PSD está apostado a criar sobre si para o eleitorado. Ele quer que quem o veja e ouça a falar em cristãos novos vs. cristãos, possa pensar: ele é como nós, pode ser tão coloquial como qualquer um. Pouco importa os não-cristãos e os cristãos-novos que queimámos na fogueira, que perseguimos. Pouco importa que boa parte de nós, incluindo muitos que possam recorrer à mesma expressão, possamos ser descendentes de cristãos-novos.
Acontece que Luís Montenegro não é um homem normal nos cânones da meritocracia do país. Está na elite política há muitos anos e é uma presença assídua nos media. O discurso foi bastante bem preparado, não acredito na teoria da ignorância, pelo que o diferencial discursivo actual de Luís Montenegro face a toda a sua carreira política tem um intento e uma fórmula.
Se observarmos atentamente todo o discurso referido, encontramos dois apontamentos do mesmo grau de autenticidade humana a que Montenegro apela. Chamar Mariana Mortágua de “Cinderela”, e louvar o saudoso Paulo Portas – o homem que introduziu o preconceito discursivo contra minorias no espectro dos partidos com representação parlamentar – dizendo: “Aqueles que se preocupam, e bem e legitimamente, com questões de integração, com questões de segurança, têm o dever de apresentar as ideias, os caminhos para precisamente diminuir o perigo da insegurança, o perigo da instabilidade social que atrair imigrantes também comporta.”
Na globalidade, num só discurso, conseguiu ser anti-semita, machista – ao deslegitimar a condução política de uma mulher – e mentiroso, na medida em que não é verdade que haja uma relação entre imigração e insegurança.
O intento e fórmula de Luís Montenegro são conhecidas. Incorporar ingredientes da extrema-direita num suposto campo de centro-direita (suposto, porque já não o é), esvaziando o partido à sua direita. Acontece que os resultados também são conhecidos, das diversas experiências pela Europa fora. Os eleitores tendem a ficar com o original e não com a cópia.
Centro-me no discurso de 25 de Novembro por ser o acto inaugural desta viagem a primeiro-ministro, o seu manifesto político. No entanto, de lá para cá, a cadência manteve-se.
Na rede social X chamou de “conquistadores” à equipa técnica do Palmeiras que venceu o Campeonato Brasileiro de futebol; num debate, perante uma proposta de cariz social democrata, acusou a mesma de ser digna da Venezuela ou de Cuba; num vídeo do PSD diz que o seu prato de comida preferido é o Cozido à Portuguesa (ora, com certeza), que o seu clube de futebol é “o de todos nós: POR TU GAL” (e não o Futebol Clube do Porto do qual foi membro do Conselho Geral) e, lá está, que a palavra que melhor o define é “autenticidade”.
Suspeito que encontremos melhor a autenticidade de Luís Montenegro no instinto íntimo de dizer à Mariana Mortágua que “não interrompo porque não quero” e no instinto político de fugir aos debates com Rui Tavares e Paulo Raimundo.
Quanto ao resto, linguagem é política e a extrema-direita já está na língua do Luís Montenegro.