O caso da Ucrânia é o plasmar duma verdade, insofismável, de que sem capacidade terrestre adequada e tecnologicamente avançada a soberania estará em risco. E esta capacidade não se constrói dum dia para o outro, pois os equipamentos não estarão disponívei
Oapoio, pelos europeus, ao esforço de guerra da Ucrânia contra a invasão russa, trouxe à superfície as enormes vulnerabilidades, em termos de capacidades militares, de que as Forças Armadas dos países europeus padecem. E as portuguesas são das que têm mais dificuldades, fruto dum desinvestimento continuo na Defesa Nacional em geral e, nas nossas Forças Armadas (FAA), em particular. Este desinvestimento, que indicia no mínimo desinteresse, é transversal aos diversos pilares da Defesa Nacional, seja a necessária atualização dos documentos políticos e estratégicos, seja a extinção progressiva das indústrias de defesa, sejam os assuntos dos recursos humanos das FAA, seja a não-execução e deficiente financiamento dos programas das Leis de Programação Militar (LPM), seja a incapacidade orçamental, em especial nos últimos 20 anos, para o funcionamento das FAA. Tudo isto tem sido objeto de muitas e fundamentadas análises, ao longo dos anos, sem que daí tenham resultado significativas melhorias. Não há, também, nestas curtas palavras, espaço para abordar dois vetores fundamentais da Defesa Nacional, que são os Recursos Humanos e as Indústrias de Defesa, elementos estruturantes da capacitação das FAA para a consecução das operações militares, em situação de conflito e de guerra. Mas são, também, aspetos fulcrais da Economia e das Políticas Públicas da Defesa e Segurança Nacionais. Ficarão para uma posterior análise.
Sem nenhum tipo de desprimor pela Marinha e Força Aérea portuguesas, que muito prezo e respeito, não há dúvida de que o Exército tem sido o Ramo onde menos se tem investido em equipamentos militares, desde o início das LPM, bastando consultar as percentagens relativas de investimento, em termos globais das aquisições realizadas.
Os conflitos e as guerras sempre tiveram a superfície terrestre como espaço decisivo, pois é onde vivem as populações e onde estão os recursos imediatamente mobilizáveis para o esforço de guerra, complementadas com as necessárias ações nas dimensões marítima, aérea, espaço e ciberespaço, assim como no espaço subterrâneo e submarino. As operações militares são, por natureza, intrinsecamente conjuntas, mas o que temos observado nos conflitos e guerras recentes (e nas antigas também) é a necessidade duma robusta, e tecnologicamente avançada, componente terrestre para o sucesso da estratégia operacional militar. Portugal possui espaços marítimos e aéreos relevantes, onde é necessário preservar a soberania. Mas, num conceito de Defesa Coletiva nos espaços das Alianças onde nos inserimos, seremos chamados a integrar as componentes terrestres multinacionais aliadas, como compromisso político que assumimos, além de termos de garantir a segurança do espaço terrestre nacional, mesmo que este não seja a área de operações terrestres principal da Aliança. E, não podemos dar por adquirido que o espaço terrestre nacional, onde se encontram as infraestruturas críticas nacionais e aliadas, não venha a ser alvo de ações militares, de dimensão e qualidade variadas, duma ameaça que se materialize, como poderá vir a ser o caso da Federação Russa no curto/médio prazo.
O combate convencional terrestre de alta intensidade, que parecia ter sido enterrado com as guerras assimétricas e a gestão de crises do pós-Guerra Fria, veio reocupar uma centralidade que parecia perdida, fruto dos ilusórios dividendos da paz, com que a Europa se acomodou na perspetiva (morta) de paz perpétua. Claro que os países que nunca perderam a perspetiva e a capacidade de pensamento estratégico, mesmo diminuindo a dimensão das suas componentes terrestres, nunca abdicaram de capacidades dissuasoras adequadas, assentes em novas tecnologias, que permitam diminuir efetivos sem perder potencial de combate, que só a tecnologia, aliada ao treino operacional e formação de excelência, permitem obviar. Infelizmente, esse não foi o caso do nosso país, onde o investimento tecnológico na componente terrestre, que é o produto operacional do Exército português, tem sido baixo.
As Forças Terrestres organizam-se taticamente em Brigadas de Combate e articulam-se em Forças Ligeiras, Médias e Pesadas, de acordo com as tipologias dos equipamentos e viaturas principais que as equipam. As Forças Pesadas possuem unidades com Carros de Combate e Viaturas de Combate de lagartas, apoiadas por artilharia autopropulsada de longo alcance. As Médias têm viaturas blindadas mais ligeiras, tracionadas a rodas, mas de elevada tecnologia e poder de fogo e com blindagens robustas. E as Ligeiras são equipadas com meios blindados ligeiros, que conferem proteção mínima adequada, e que são rapidamente projetáveis para teatros de operações mais longínquos. A tudo isto se associam sistemas de defesa aérea variados (incluindo capacidades antidrone, fundamentais como temos observado na guerra da Ucrânia) e capacidades de drones de vigilância e de ataque, a novidade relevante nos modernos campos de batalha, onde se inserem também os helicópteros, de ataque e de transporte tático. E, claro, as Forças Especiais e as capacidades do chamado apoio de combate, como as modernas engenharias de combate, as comunicações e outros sistemas. E também as munições e os mísseis, sem os quais não é possível combater. De tudo isto, que é o mínimo exigível, tem o Exército português muitas e sérias faltas.
A doutrina da Aliança Atlântica, pela qual nos regemos, aconselha a estruturação das componentes terrestres das nações em sistemas equilibrados entre as 3 tipologias de forças, tecnologicamente desenvolvidas e interoperáveis com as outras componentes terrestres aliadas onde serão integradas, no quadro dos planos operacionais e estratégicos de defesa.
O planeamento estratégico nacional, nas suas vertentes genética e estrutural, desenhou um sistema de forças terrestre equilibrado e razoavelmente dimensionado, que deve ser melhorado, mas que não está adequadamente consolidado, fruto da falta do investimento necessário, ao longo dos anos, em sede de LPM.
A última revisão da LPM, aprovada em 2023, piorou a situação ao não-financiar adequada e atempadamente inovações tecnológicas nos sistemas terrestres mais modernos, nomeadamente as viaturas blindadas Pandur e os carros de combate Leopard 2A5, condenando a nossa capacidade, nas Forças Médias e Pesadas, a uma obsolescência que nos afasta da interoperabilidade com os nossos aliados, com riscos sérios para a nossa capacidade de defesa terrestre.
O caso da Ucrânia é o plasmar duma verdade, insofismável, de que sem capacidade terrestre adequada e tecnologicamente avançada a soberania estará em risco. E esta capacidade não se constrói dum dia para o outro, pois os equipamentos não estarão disponíveis quando forem necessários. Os Exércitos preparam a guerra capacitando-se em tempo de paz. Infelizmente, nesta Europa, onde nos incluímos, o que temos visto é a sua degradação, com as consequências que estão à vista de todos. E o pior cego é aquele que não quer ver. Se não arrepiarmos caminho, iremos, que nem sonâmbulos, caminhando para o abismo.