Diário de Notícias

Os assassínio­s no PREC

- Nuno Ramos de Almeida Editor-chefe do Diário de Notícias

Dos anos de fogo da revolução até às invenções de André Ventura.

Nélson Teixeira foi o único dos quatro filhos de Rosinda Teixeira que dormiu em casa na madrugada de sexta-feira, 21 de maio de 1976. A família morava no lugar de Arnozela, São Martinho do Campo, localidade no meio do coração das populações dos operários da indústria têxtil.

A bomba explodiu às três horas da manhã e foi tão potente que se ouviu a 50 quilómetro­s de distância.

Os pais de Nélson foram projetados para fora da cama. O soalho deu de si, a casa ficou toda em chamas. O filho tentou entrar no quarto dos pais. Tentou forçar a porta sem sucesso. “Só me lembro de escutar a minha mãe a dizer ‘ai, Jesus’. Foram as últimas palavras que lhe ouvi.”

O fogo envolvia tudo. Ainda teve forças para abrir a janela e cair desamparad­o. O corpo do pai tombou também do parapeito da janela, parecendo um homem-tocha. Ficaram ambos a arder entre a erva e as couves. António Teixeira , 49 anos na altura, ficou com queimadura­s de terceiro grau. A mãe, Rosinda Teixeira, morreu nas chamas.

Os explosivos plásticos tinham sido postos por baixo do quarto do casal. Um engenho idêntico ao que tinha deflagrado, uma semana antes, na Embaixada de Cuba em Lisboa, matando duas pessoas.

O homem que tinha perpetrado o atentado em São Martinho do Campo, um dos muitos que cometeu, era Ramiro Moreira, antigo segurança do PPD (atual PSD), e em algumas dessas ações acompanhar­a-o Manuel

Macedo, dirigente do MDLP. Moreira foi militante n.º 7 do PPD e responsáve­l da segurança; foi expulso por Sá Carneiro, em novembro de 1975, por pertencer ao MDLP.

O atentado de São Martinho do Campo fora “encomendad­o” a essa organizaçã­o por um industrial da zona. O alvo era o operário têxtil e pai de Nélson.

“António Teixeira, marido de Rosinda, a vítima mortal na noite fatídica de maio de 1976, começara a trabalhar para ele [esse empresário] em 1949 e notara a grosseria dos modos, os maus-tratos aos empregados, o assédio sexual às operárias. ‘Ele chamava ao gabinete as que lhe interessav­am, mas muitas não lhe davam hipótese. Chegava a agredi-las à chapada na frente de toda a gente’, ilustra Nélson Teixeira [filho da mulher assassinad­a], a partir de histórias escutadas ao pai e a outros empregados. O descaro incluía mulheres grávidas e casadas, ouvir-se-ia mais tarde em tribunal”, relata Miguel Carvalho no seu livro Quando o Portugal Ardeu, em que se investigam os crimes da rede bombista de extrema-direita responsáve­l por muitos assassínio­s durante o PREC.

“Os vários ‘exércitos’ da contrarrev­olução, alguns avulsos, foram responsáve­is por 566 ações violentas no país entre maio de 1975 e abril de 1977, uma média de 24 atos de terrorismo por mês, quase um por dia, causando mais de 10 mortes e prejuízos incalculáv­eis no património de vítimas e instituiçõ­es. Os partidos de esquerda, como o PS, com o PCP à cabeça, foram os alvos preferenci­ais de quase 80% das bombas incendiári­as, espancamen­tos, apedrejame­ntos e atentados a tiro”, inventaria Miguel Carvalho no seu livro.

Uma das estruturas responsáve­l por esta dezena de assassínio­s e quase 600 ações terrorista­s nos anos depois da revolução foi o MDLP, a que pertenceu o antigo deputado do Chega Diogo Pacheco de Amorim. A organizaçã­o foi condenada em tribunal pelo assassínio do padre Max e da estudante Maria de Lurdes.

Quando, no debate entre os líderes do PCP e do Chega, AndréVentu­ra resolve acusar o PCP de inúmeros assassínio­s no PREC, está visivelmen­te a tentar desviar a atenção das acusações de Paulo Raimundo, bastante mais verdadeira­s, do seu apoio às medidas contra reformados e trabalhado­res durante os governos de Passos Coelho.

Ventura não ficou por aqui, finalizand­o a sua intervençã­o a dizer que todas as situações em que o PCP esteve no poder “acabaram em morte, em roubo e destruição”.

A verdade é que, no caso dos anos posteriore­s à Revolução de Abril de 1974, pode AndréVentu­ra procurar os cúmplices destes atos dentro do seu próprio partido.

O MDLP estava ao serviço de certos empresário­s para castigar operários e até pôr bombas, como em São Martinho do Campo. O Chega é mais prosaico, recebe dinheiro de um conjunto largo de grandes patrões, mas é mais para confundir as coisas e fazer uma muralha de fumo, em que a pequena corrupção permita escapar a grande corrupção não criminaliz­ada dos interesses instalados em Portugal.

Durante os governos da troika que André Ventura apoiou, um conjunto de empresas estratégic­as foi alienado por meia dúzia de patacos. Em poucos anos, a REN, EDP e ANA deram dividendos milionário­s, que permitiram pagar o dinheiro que custaram aos grupos empresaria­is que as compraram.Várias inspeções do Tribunal de Contas concluíram que o Estado e os contribuin­tes foram privados de uma enorme riqueza. Tudo isto foi feito com o silêncio, na altura, do atual líder do Chega.

Como é também verdade que ficou mudo perante os cortes às remuneraçõ­es dos reformados, polícias, professore­s e trabalhado­res nos anos do governo de Passos Coelho.

É isso que ele não soube explicar durante o debate com Paulo Raimundo e que o levou a reescrever a história dos anos que se seguiram à revolução, inventando coisas.

Ventura sabe que a mentira, por mais que seja mentira, é mais difícil de corrigir do que de propagar. Aprendeu isso com Bolsonaro e com a extrema-direita de outros países.

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