Onde eu estava
Edmar Pires nasceu a 27 de outubro de 1946. É de Paço de Arcos, onde vive até hoje. Tem o curso da António Arroio. É desenhador-projetista.
Em fevereiro de 1974 a minha vida era tranquila. Trabalhava num conhecido ateliê de arquitetura, em Lisboa. Ganhava cerca de 10 mil escudos por mês, um belíssimo ordenado para a época. Pagava de renda de casa dois mil escudos. Estava casado e prestes a ser pai – a minha filha Catarina nasceria quatro meses depois, já em liberdade.
Tinha 28 anos, vivia em Paço de Arcos, a terra onde nasci, filho de um calceteiro e de uma empregada das limpezas com trabalho fixo em casa de uma senhora ‘bem’ da Linha.
Se consegui evoluir e tirar um curso na António Arroio, se alcancei conforto, Paço de Arcos pouco melhor estava que a terra que conheci na minha infância – muita pobreza envergonhada. Portugal pouco ou nada andava para a frente. Recordo-me de que antes de ir para a escola, miúdo de 10 anos, descia à lota para apanhar os peixes que caíam no chão. Quase duas décadas depois, muitas famílias continuavam a ter muitas dificuldades. Nas férias ajudava o meu pai, um dos homens que ajudou a fazer as calçadas da Marginal. Levava-lhe a merenda e uma ciganita – uma garrafa de cerveja cheia de vinho, que na altura se comprava avulso nas tabernas. Em 1974 o trabalho infantil continuava a existir.
De tal maneira havia falta de condições que, com outros, organizei uma comissão de moradores. Trabalhávamos em prol da terra, pondo contentores para o lixo, plantando plátanos junto à Escola Náutica, negociando o preço dos autocarros que iam da Praça J. Pimenta até a estação. Em matéria de liberdade, com Marcello Caetano o regime também pouco melhorou.
Mas, como disse, em 1974, financeiramente, a minha vida era confortável. Até a viagem de comboio para o ateliê, em Lisboa, não me pesava. Nunca gostei de carros. Ainda apensei por um Fiat 500, o carro da moda, que em segunda mão custava 20 contos. Mas não me apeteceu tirar a carta.
Em 1974, em Paço de Arcos não havia hospital. Nem supermercados. As compras eram feitas nas mercearias. Usava-se o cabelo à Beatles. Nunca prescindi do bigode. As senhoras usavam penteados muito ripados e presos com laca.
Todos os dias, a caminho do trabalho, passava no Cais do Sodré. Por vezes entrava numa das várias tascas onde se serviam petiscos – iscas, bifanas, choco frito – e a ‘bica’ com abafadinho (uma mistura de aguardente mais leve com moscatel). O açúcar era servido numa conchinha em inox.
Para Cinzano – bom para lavar moedas se comparado com o nosso moscatel – e whiskey ia-se ao British Bar. Aliás, o vinho de marca engarrafado era para ricos. Comprava-se avulso nas tabernas. O cliente levava o recipiente.
Em fevereiro de 1974 já tinha carta de marinheiro. Nos tempos livres ia com amigos à pesca, de Paço de Arcos a Cascais, num barco que recuperei. Chamei-lhe Aurora (depois do 25 de Abril passou a ser Aurora da Liberdade). Nessas pescarias, de onde trazíamos robalos e douradas, falava-se do trabalho e da política. Antes do 25 de Abril tinha muita simpatia pelo MDP/CDE
Não foi fácil ter uma vida melhor. Depois do curso fui chamado à tropa. Em Moçambique, estive em zona de guerra.Vi morrer muitos homens.
No regresso, candidatei-me a empregos como desenhadorprojetista. Sempre tive jeito para o desenho, e na altura eram feitos à mão, com tinta-da-china. No primeiro ateliê onde trabalhei apaixonei-me pela telefonista. Mais velha do que eu sete anos. Não era comum a rapariga ser mais velha de que o rapaz. Aproveitávamos a hora de almoço para namorar, passeando pelos jardins. Casámos em 1973.
Depoimento recolhido por Alexandra Tavares-Teles.
“Em 1974, em Paço de Arcos não havia hospital. Nem supermercados. As compras eram feitas nas mercearias. Usava-se o cabelo à Beatles.”