“Chega está na fase ultradigital, PS e outros no modo analógico”
Fernanda Sarkis e Marcus Nogueira, investigadores que ajudaram o Partido dos Trabalhadores, de Lula, a bloquear a ofensiva digital da extrema-direita em 2022, preveem chegada de avalanche bolsonarista às eleições portuguesas. “O Brasil, além de ter 214 mi
Depois das presidenciais do Brasil ganhas por Lula da Silva, em 2022, dois investigadores, até então desconhecidos do público, tornaram-se protagonistas de reportagens nos veículos de comunicação do país: o trabalho de Fernanda Sarkis, mestre em Comunicação Política, e de Marcus Nogueira, sociólogo, foi considerado “fundamental” por, entre outros, Cristiano Zanin, ex-advogado de Lula e hoje juiz do Supremo brasileiro, para garantir a vitória do candidato do Partido dos Trabalhadores (PT) e travar a reeleição de Jair Bolsonaro, que havia atropelado os rivais no campo digital em 2018.
“O que nós fizemos em 2022, no Brasil, ao serviço dos advogados do PT, foi analisar os ecossistemas de desinformação da extrema-direita e, a partir deles, mover mais de 150 ações na justiça eleitoral para derrubar esses conteúdos com base na verificação das agências de fact checking”, conta Fernanda Sarkis ao DN. “Um exemplo? Derrubámos um áudio do Lula, com voz falsa, onde ele supostamente dizia que ia mandar matar um opositor.”
A dupla, além da experiência adquirida ao serviço do gabinete jurídico do PT, ajudara o PS, naquele mesmo ano, a obter maioria absoluta, depois de mapear a extrema-direita portuguesa no universo digital. É com esse conhecimento dos dois lados do Atlântico que Sarkis e Nogueira constatam agora “um massacre do Chega nas redes”.
“Em Portugal, pode não haver fake news tão escandalosas como aquela da voz falsa do Lula ou como a de que, se o PT vencesse, os biberões seriam em forma de pénis para combater a homofobia, mas foi usada a imagem de uma mulher sem-abrigo nua como sendo em Portugal, que já fora usada em Espanha e em Itália, a questão das casas de banho mistas pegou e a de que um general venezuelano havia dado dinheiro a Mariana Mortágua também”, adverte Sarkis.
“Mas o que queremos sublinhar”, completa Nogueira, “é que há uma rede internacional com um discurso, apesar dos regionalismos, como o muro de Trump, a ideia da perseguição aos cristãos no Brasil ou o ataque ao islamismo na Europa na ideia da reconquista, muito semelhante, com base na guerra cultural. A alavanca comunicacional que mobiliza a base popular de Ventura, Trump, Bolsonaro, Milei, Meloni, Abascal, Orbán sustenta-se numa identidade comunitária em torno da defesa dos valores judaico-cristãos, numa cruzada contra questões de género, aborto, drogas, na suposta defesa da família e no anticomunismo”.
“E essa rede age da mesma forma: uma ocupação colossal do espaço digital obedecendo aos mesmos princípios, a instagramação contínua da realidade – Ventura faz lives e vídeos que passam para o X, ex-Twitter, Instagram, TikTok e que se tornam reportagens –, a transformação da internet numa vivência, agendando e enquadrando a realidade no debate público multiplataforma, e a criação de perfis que, ao terem muito envolvimento, se convertem em fontes de informação e até em modelos de negócio”, diz ainda Nogueira.
Um exemplo vivo disso é a entrevista do influenciador português de extrema-direita Sérgio Tavares no fim de semana passado a Jair Bolsonaro. “Essa entrevista foi uma espécie de ponto de viragem: de repente, Tavares, cujas lives, no início, não passavam das 300 pessoas, ao alcançar
Fernanda Sarkis e Marcus Nogueira ajudaram Lula a vencer em 2022. mais de 800 mil visualizações passou a ser visto como uma fonte jornalística, uma fonte de verificação validada por um dos atores com maior capacidade de agendamento dentro da rede, Jair Bolsonaro”, acrescenta Sarkis. “Tavares agora pertence ao ecossistema bolsonarista. Na perspetiva de que o ator é a rede, é como se a extrema-direita do Brasil estivesse a dizer ‘eu vou invadir a sua praia’ [alusão a música do grupo rock brasileiro Ultraje a Rigor] e vou invadi-la com o meu modo de narrar a realidade, sendo que a praia é o espaço digital português.”
“O Brasil, além de ter 214 milhões de habitantes, tem uma cultura digital, para o bem e para o mal, de vanguarda que pode entrar nas eleições portuguesas como uma avalanche, e o Chega já se está a beneficiar disso há muito tempo”, vinca Nogueira.
“As evidências vêm agora, no contexto das eleições: além daquela entrevista com apoio explícito de Bolsonaro, há as visitas a dirigentes do Chega de Eduardo Bolsonaro [deputado federal e responsável pelas relações internacionais da extrema-direita do Brasil], de Onyx Lorenzoni [ministro de quatro pastas durante o governo de Bolsonaro] e de outras personalidades da extrema-direita.”
Nas eleições de 2018, enquanto a campanha de Bolsonaro, com apoio de Steve Bannon, guru de Donald Trump, ocupava com vigor o espaço digital, as candidaturas dos partidos tradicionais, como Fernando Haddad, do PT, e Geraldo Alckmin, do PSDB, estavam alheadas do fenómeno. Alckmin preocupou-se, sobretudo, em estabelecer alianças com o maior número de partidos, para, através delas, alargar o tempo de antena nas plataformas tradicionais, como a TV e a rádio, onde Bolsonaro não dispunha de mais do que alguns segundos – Bolsonaro, porém, venceria as eleições e Alckmin não chegaria aos 5%.
“Para as eleições de março em Portugal”, continua Sarkis, “enquanto o Chega está, como a rede transnacional de extrema-direita de que faz parte, numa fase ultradigital, o PS – e os demais partidos tradicionais – estão na fase analógica, a utilizar as plataformas como painel de anúncios, sem transitar para o paradigma da vivência e realização do mundo multiplataforma na integração online-offline”. E remata: “Estão numa espécie de negacionismo comunicacional digital, agravado por uma surdez que impede de ouvir a história emocionalmente envolvente que encanta e mobiliza corações e mentes.”