Um golpe sem “VAR”, os memes de liceu e a queda de “Sorocabannon”
Averve politicamente incorreta era a marca do cartunista Millôr Fernandes, patriarca do humor carioca. Certa vez, ele disse que os brasileiros deveriam lutar não apenas pela melhoria do sistema prisional, mas também para que as cadeias tivessem artigos de luxo. Só assim, segundo Millôr, criminosos ricos poderiam um dia ser presos. A estocada atinge duas mazelas brasileiras: as péssimas condições das cadeias e a impunidade dos poderosos.
Os atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023 em Brasília são frequentemente comparados ao 6 de janeiro americano, quando vândalos destruíram o Capitólio, emWashington. O caso brasileiro, no entanto, foi ainda mais grave. Nos Estados Unidos destruiu-se apenas a sede do Congresso. No Brasil foram profanados os templos dos três pilares da democracia – os palácios do Executivo, do legislativo e do judiciário.
Até quinta-feira 8 de fevereiro achava-se que o vandalismo em Brasília seria mais um caso da impunidade criticada por Millôr. Apenas alguns dos seus autores – a massa de manobra bolsonarista que clamava por golpe em frente aos quartéis – foram processados e presos. Onde estavam, no entanto, os idealizadores, os financiadores, os insufladores? Livres e impunes. Pelo menos até quinta-feira 8 de fevereiro, quando novas provas foram apresentadas e alguns dos suspeitos foram detidos ou alvos de buscas e apreensões.
Estavam todos sob o escrutínio silencioso da Polícia Federal. Os indícios preliminares apontavam para um plano golpista em três fases. A primeira: lançar suspeitas de fraude sobre o processo eleitoral. A segunda: elaborar uma justificativa jurídica para uma quartelada antidemocrática. A terceira: convencer os militares brasileiros a embarcar no golpe.
A primeira fase do plano já havia sido investigada e condenada no ano passado. Por lançar suspeitas infundadas sobre as urnas eletrónicas – um dos poucos orgulhos brasileiros, ao lado da música popular, da seleção de futebol e dos aviões da Embraer –, Bolsonaro perdeu o direito de concorrer a cargos públicos até 2030.
A Polícia Federal divulgou na quinta-feira, dia 8, uma importante prova da segunda fase: a minuta de uma justificativa jurídica para um golpe militar. Segundo as investigações, o próprio Bolsonaro “editou” o texto, alterando as indicações dos que seriam presos caso o golpe se consumasse. Um dos autores da minuta foi Filipe Martins, assessor próximo de Bolsonaro. Nascido na cidade paulista de Sorocaba e fã de Steve Bannon, assessor de Trump, Martins é chamado de “Sorocabannon” nos círculos bolsonaristas.
A nova investigação revelou também os generais da “terceira fase”. Augusto Heleno, ex-ministro de Bolsonaro, aparece num vídeo a defender que algo deveria ser feito antes, e não depois, das eleições: “Assim não vai ter VAR”, disse numa reunião em julho de 2022.Walter Braga Netto, também do gabinete bolsonarista, foi designado para constranger os seus companheiros de armas. Ele distribuiu por grupos deWhatsApp memes com ofensas cabeludas contra os generais que não aderiram ao golpe – montagens dignas de adolescentes de liceu, e não de um general de cinco estrelas.
Em comentário no canal GloboNews, o escritor Fernando Gabeira disse que existem golpes bem-sucedidos, em que os opositores são presos, e golpes fracassados, em que são os golpistas que acabam na cadeia. A intentona bolsonarista encontra-se num limbo. Como a cúpula do Exército não aderiu – por mais cabeludos que fossem os memes do general Braga Netto –, o golpe foi abortado e alguns dos seus protagonistas sumiram do Brasil por uns tempos. Entre eles, o “Sorocabannon” Filipe Martins e o próprio Bolsonaro. Os dois voltaram ao país quando os seus advogados avaliaram que não seriam detidos.
Era uma previsão otimista. “Sorocabannon” foi preso na quinta-feira, dia 8, junto com três militares próximos a Bolsonaro. Seguem as investigações em torno do ex-presidente, que agora não tem mais a opção de viajar para os Estados Unidos. Seu passaporte foi apreendido na operação policial. Para o bem e para o mal, o Brasil descrito por Millôr Fernandes mantém as suas características, mas vem mudando lentamente.