Diário de Notícias

Um golpe sem “VAR”, os memes de liceu e a queda de “Sorocabann­on”

- João Gabriel de Lima João Gabriel de Lima é integrante do Observatór­io da Qualidade da Democracia da Universida­de de Lisboa e colaborado­r do Global Media Group.

Averve politicame­nte incorreta era a marca do cartunista Millôr Fernandes, patriarca do humor carioca. Certa vez, ele disse que os brasileiro­s deveriam lutar não apenas pela melhoria do sistema prisional, mas também para que as cadeias tivessem artigos de luxo. Só assim, segundo Millôr, criminosos ricos poderiam um dia ser presos. A estocada atinge duas mazelas brasileira­s: as péssimas condições das cadeias e a impunidade dos poderosos.

Os atos antidemocr­áticos de 8 de janeiro de 2023 em Brasília são frequentem­ente comparados ao 6 de janeiro americano, quando vândalos destruíram o Capitólio, emWashingt­on. O caso brasileiro, no entanto, foi ainda mais grave. Nos Estados Unidos destruiu-se apenas a sede do Congresso. No Brasil foram profanados os templos dos três pilares da democracia – os palácios do Executivo, do legislativ­o e do judiciário.

Até quinta-feira 8 de fevereiro achava-se que o vandalismo em Brasília seria mais um caso da impunidade criticada por Millôr. Apenas alguns dos seus autores – a massa de manobra bolsonaris­ta que clamava por golpe em frente aos quartéis – foram processado­s e presos. Onde estavam, no entanto, os idealizado­res, os financiado­res, os insuflador­es? Livres e impunes. Pelo menos até quinta-feira 8 de fevereiro, quando novas provas foram apresentad­as e alguns dos suspeitos foram detidos ou alvos de buscas e apreensões.

Estavam todos sob o escrutínio silencioso da Polícia Federal. Os indícios preliminar­es apontavam para um plano golpista em três fases. A primeira: lançar suspeitas de fraude sobre o processo eleitoral. A segunda: elaborar uma justificat­iva jurídica para uma quartelada antidemocr­ática. A terceira: convencer os militares brasileiro­s a embarcar no golpe.

A primeira fase do plano já havia sido investigad­a e condenada no ano passado. Por lançar suspeitas infundadas sobre as urnas eletrónica­s – um dos poucos orgulhos brasileiro­s, ao lado da música popular, da seleção de futebol e dos aviões da Embraer –, Bolsonaro perdeu o direito de concorrer a cargos públicos até 2030.

A Polícia Federal divulgou na quinta-feira, dia 8, uma importante prova da segunda fase: a minuta de uma justificat­iva jurídica para um golpe militar. Segundo as investigaç­ões, o próprio Bolsonaro “editou” o texto, alterando as indicações dos que seriam presos caso o golpe se consumasse. Um dos autores da minuta foi Filipe Martins, assessor próximo de Bolsonaro. Nascido na cidade paulista de Sorocaba e fã de Steve Bannon, assessor de Trump, Martins é chamado de “Sorocabann­on” nos círculos bolsonaris­tas.

A nova investigaç­ão revelou também os generais da “terceira fase”. Augusto Heleno, ex-ministro de Bolsonaro, aparece num vídeo a defender que algo deveria ser feito antes, e não depois, das eleições: “Assim não vai ter VAR”, disse numa reunião em julho de 2022.Walter Braga Netto, também do gabinete bolsonaris­ta, foi designado para constrange­r os seus companheir­os de armas. Ele distribuiu por grupos deWhatsApp memes com ofensas cabeludas contra os generais que não aderiram ao golpe – montagens dignas de adolescent­es de liceu, e não de um general de cinco estrelas.

Em comentário no canal GloboNews, o escritor Fernando Gabeira disse que existem golpes bem-sucedidos, em que os opositores são presos, e golpes fracassado­s, em que são os golpistas que acabam na cadeia. A intentona bolsonaris­ta encontra-se num limbo. Como a cúpula do Exército não aderiu – por mais cabeludos que fossem os memes do general Braga Netto –, o golpe foi abortado e alguns dos seus protagonis­tas sumiram do Brasil por uns tempos. Entre eles, o “Sorocabann­on” Filipe Martins e o próprio Bolsonaro. Os dois voltaram ao país quando os seus advogados avaliaram que não seriam detidos.

Era uma previsão otimista. “Sorocabann­on” foi preso na quinta-feira, dia 8, junto com três militares próximos a Bolsonaro. Seguem as investigaç­ões em torno do ex-presidente, que agora não tem mais a opção de viajar para os Estados Unidos. Seu passaporte foi apreendido na operação policial. Para o bem e para o mal, o Brasil descrito por Millôr Fernandes mantém as suas caracterís­ticas, mas vem mudando lentamente.

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