A vitória de Biden sobre Trump em 2020 parecia dar-nos razões para suspirar de alívio. Mas nunca é bom pôr para debaixo do tapete o aviso que nos recorda que a História nunca acaba – mesmo quando isso dava imenso jeito.
Donald Tusk tem toda a razão: se Ronald Reagan cá estivesse, teria vergonha dos republicanos que, supostamente, seriam seus herdeiros. Como bem lembrou o regressado primeiro-ministro polaco, foi um presidente republicano que abriu caminho à democratização do Leste europeu e à construção de uma defesa da liberdade do espaço ocidental, reduzindo a ameaça soviética.
Neste tempo de amargas ironias e profundas contradições históricas, a cedência da direita americana à Rússia de Putin salta particularmente à vista. Há apenas 12 anos, nas eleições presidenciais de 2012, o nomeado republicano – Mitt Romney – fez da ameaça de Vladimir Putin o “inimigo n.º 1” da América.
Apenas uma década depois, o mesmo Partido Republicano está dominado pelos interesses perversos (objetivamente imperialistas, hipocritamente sustentados por revisionismos históricos enviesados e mal amanhados) do mesmo Vladimir Putin.
A “entrevista” (pôr muitas aspas…) do presidente russo ao “jornalista” (colocar ainda mais aspas) norte-americano Tucker Carlson até dava para rir. Mas é capaz de ser mais prudente chorar. Por tudo o que ela representa: Putin conseguiu, com enorme alcance mediático, falar para o público norte-americano (e para muitos outros públicos por todo o mundo), num cenário de alegada entrevista séria e “jornalística” (muitas aspas, por favor), mas na verdade sem ser sujeito ao contraditório e tendo em contracena alguém que, nos últimos anos, elogiou o autoritarismo do presidente russo e depreciou as qualidades políticas e até físicas do presidente ucraniano.
Putin pôde, sem grande esforço, passar a ideia de que, por ele, até negociava a paz. Que, por ele, a guerra já tinha acabado. Que o problema será Zelensky, que fez aprovar um decreto que proíbe negociações com a Rússia. Que foi provocado e que terá que eliminar a “nazificação” da Ucrânia. E que, por ele, Putin, nem haveria razões de se perguntar se a Rússia pondera invadir a Polónia ou a Lituânia.
Guy Verhofstadt, ex-primeiro-ministro belga e atual deputado europeu, colocou o dedo na ferida: a entrevista de Tucker Carlson com Vladimir Putin “foi a melhor coisa que já aconteceu” ao líder russo. “A América sofrerá mais tarde por ver Putin a espalhar mentiras sem contestação e sem filtro. É assim que as democracias morrem.”
Desgraça americana
Foi mais um exemplo da desgraça americana, neste tempo de impasse político imposto pelos republicanos trumpistas no Congresso.
A farsa que Carlson ofereceu a Putin reforçou o caso de que a campanha presidencial de Donald Trump tem vários aliados não declarados, mas cada vez mais evidentes: Putin na Rússia (convém lembrar que no dia seguinte ao triunfo de Trump no Iowa, o presidente russo falou em “fraude na eleição de Biden em 2020”); Orbán na Hungria (com os seus bloqueios na União Europeia e os seus adiamentos no processo de entrada da Suécia na NATO); os republicanos no Congresso. Todos eles estão, neste momento, a contribuir para a narrativa de que não haverá alternativa que não seja colocar a Ucrânia a ceder território e que deixou de haver condições políticas nos EUA para aprovar novos financiamentos para ajudar militarmente Kiev.
Isto é de uma gravidade maior do que, à primeira vista, muitos possam imaginar. Porque implica que, antes ainda de uma eventual eleição presidencial de Donald Trump (algo que está bem longe de constituir uma inevitabilidade, embora seja um risco real), os efeitos negativos já estão a ocorrer.
Pequena maioria, dano gigantesco
Nas eleições intercalares de novembro de 2022, os republicanos perderam inesperadamente o Senado para os democratas, mas ganharam, por muito pouco, a Câmara dos Representantes.
Foi um resultado bastante melhor para Joe Biden e os democratas do que se antevia e parecia apontar uma maior robustez da presidência Biden a meio do mandato do que muitos na altura consideravam. Mas a perda, à tangente, da câmara baixa veio a revelar-se muitíssimo danosa.
Com Kevin McCarthy como speaker, até houve uma proposta de impeachment contra Joe Biden, relativa a um caso relacionado com os negócios do filho Hunter. A acusação não tem fundamento real para remover Biden do cargo – mas conferiu um primeiro sinal do que estava para vir.
A queda de McCarthy foi o momento que fez tudo piorar ainda mais. O conamericana gressista republicano da Califórnia (que já tinha precisado de 15 votações para ser eleito) foi o primeiro líder da Câmara dos Representantes demitido na história do Congresso americano. Vítima de dissidentes do seu próprio partido, McCarthy não sobreviveu politicamente ao facto de ter negociado com Biden uma ajuda à Ucrânia a troco da viabilização do orçamento e do evitar de um shutdown.
Emergiu Mike Johnson (com alguma culpa dos democratas, que votaram pela destituição de McCarthy, alinhados com a extrema-direita do Partido Republicano) e, a partir daí, foi sempre a cair.
Sentido de Estado: zero
Em fevereiro de 2022, os republicanos no Congresso foram os primeiros a exigir uma ajuda militar à Ucrânia para travar a agressão russa. Dois anos depois (com eleições intercalares pelo meio e o regresso de Trump mais iminente do que nessa altura), os mesmos republicanos tudo fazem para travar esse apoio.
O atual Partido Republicano revela zero sentido de Estado. Parece ignorar por completo a dimensão da liderança global (que marcou a estabilidade das democracias liberais nos últimos 75 anos), seja por desconhecimento histórico ou por mero descaso.
Até agora, o único racional que presidiu ao comportamento republicano no Congresso é o de servir os interesses da agenda eleitoral de Donald Trump: nada que possa beneficiar a agenda Biden, nada que suscite algum capital político e eleitoral para o presidente. Isso implica assistir, impávidos, à queda da Ucrânia? Não interessa. Isso põe em risco a segurança de Israel e dá nova oportunidade ao Hamas para repetir o 7 de outubro? Não faz mal. Isso dá espaço à China para ameaçar Taiwan? Espera-se até novembro. O que é mesmo preciso, pensam os atuais republicanos que mandam na Câmara dos Representantes e também alguns que têm vaga no Senado, é bloquear a governabilidade na América nos próximos meses, contribuindo para a ideia de caos e de falhanço da Administração Biden.
Isto não devia estar a acontecer
Não era suposto que isto fosse assim. O governo na América está pensado para ser partilhado: o facto de o presidente ser democrata e as duas câmaras do Congresso estarem divididas (Senado democrata, Câmara dos Representantes republicana) não constituiria problema de maior se a política americana atravessasse um momento de relativa normalidade.
Mas há muito que isso não acontece. O sistema bipartidário nos EUA pressupõe compromisso e não chantagem. Funciona em crises, mas não está pensado para lidar com representantes eleitos que atacam os interesses do país que era suposto defenderem.
Já devíamos estar alertados para isso. Steve Bannon fartou-se de avisar, durante os anos Trump na Casa Branca (2017-2021), que o que estava a acontecer era uma “revolução populista por dentro”. Os que pretendem fazer derrocar o sistema tinham chegado ao topo do sistema.
A vitória de Biden sobre Trump em 2020 parecia dar-nos razões para suspirar de alívio. Mas nunca é bom pôr para debaixo do tapete o aviso que nos recorda que a História nunca acaba – mesmo quando isso dava imenso jeito.