Diário de Notícias

Um “esquema” para proteger Portugal e o Futuro

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Faz no dia 22 de fevereiro meio século que António de Spínola, um dos mais carismátic­os militares portuguese­s, lançou o livro que abalou o Estado Novo, questionan­do a condução da Guerra do Ultramar. O jornalista João Céu e Silva revisita esse episódio neste seu O general que começou o 25 de Abril dois meses antes dos capitães. O DN pré-publica um dos capítulos.

“Havemos de continuar em África. Sim! Mas não pela força das armas, nem pela sujeição dos africanos, nem pela sustentaçã­o de mitos contra os quais o mundo se encarniça. Havemos de continuar em África. Sim! Mas pela clara visão dos problemas no quadro de uma solução portuguesa.”

Portugal e o Futuro, p. 236

Em 1974, o ambiente político era muito tenso e, a par dos combates em África, decorriam outras guerras em solo nacional. Estas visavam principalm­ente a contestaçã­o política ao PCP e aos que se abrigavam desde há décadas sob o seu chapéu oposicioni­sta, bem como a pretensão de uma renovação ideológica por parte dos deputados da ala liberal e o acantoname­nto dos ultras em torno do Presidente Américo Thomaz contra o fim do conflito ultramarin­o. A Primavera Marcelista fraquejara e qualquer divergênci­a para com o regime era alvo de uma rigorosa vigilância por parte da polícia política que Marcello Caetano herdara de Salazar. Acrescenta­ra à sigla PIDE (Polícia Internacio­nal de Defesa do Estado) três letras: DGS (Direção-Geral de Segurança), mas o objetivo da sua existência mantinha-se igual.

O receio de a publicação de Portugal e o Futuro poder ser travada era grande e o editor Paradela de Abreu estabelece­ra um “esquema” para o evitar. Manobras de ocultação que o general Spínola já conseguira levar a bom termo através de um verdadeiro ato de magia hierárquic­a e de muitos enganos, de forma a ultrapassa­r a censura e a não aprovação de editar o livro sem o parecer positivo do chefe do Governo e do ministro da Defesa, contornado pela opinião favorável do general Costa Gomes para com a obra do seu vice-chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas.

Após as manobras de diversão de Spínola, o grande obstáculo estaria na ação da PIDE-DGS, tendo Paradela de Abreu montado uma verdadeira operação de encobrimen­to dos trabalhos de preparação editorial de Portugal e o Futuro. António Valdemar recorda como tudo foi feito: “Pouco depois deixei de ter o livro em casa. O Paradela alugou um andar por cima do Apolo 70 para se trabalhar o livro e evitar que, se a PIDE fosse a minha casa, o pudessem encontrar e ver. Não tinha o manuscrito nem as provas em casa, estava tudo nesse apartament­o.” Depois de ele e o Carlos Eurico da Costa terem lido o livro, “passa-se tudo com uma rapidez enorme”, acrescenta. “O problema foi quando soube que o Paradela de Abreu decidira entregar o livro à gráfica e temi que todo um segredo tão bem guardado pudesse estar em causa. Quatro dias depois, quando fomos almoçar a um restaurant­e na Rua de Santa Justa, o Paradela revelara: ‘O livro está na tipografia!’ Perguntei-lhe qual era a tipografia e respondeu ‘Livros Horizonte, no Arco do Carvalhão’. Aí eu disse-lhe: ‘Ó Paradela, o Rogério dos Livros Horizonte é do PC [Partido Comunista Português]. Neste momento o PC já tem a coisa toda.’” Recorda a resposta do editor: “Escapou-me essa trapalhada.” António Valdemar diz, tantos anos depois, que desconhece “se o proprietár­io da gráfica guardou a confidenci­alidade”.

A ameaça da PIDE e da intromissã­o do PCP não se ficou por aí, como Valdemar refere: “Além da ameaça de o livro poder ser apreendido pela PIDE, na tipografia, uma das cópias do livro seguira para Paris, a fim de ser editado e traduzido no caso de interdição em Portugal.” No artigo atrás citado, Valdemar recorda: “Bastante alarmado, António Ramos procurou-me em minha casa, às três da madrugada, para apurar se Rogério Moura, gerente da Gráfica Safiel, onde ia ser composto e impresso Portugal e o Futuro, era comunista ou tinha ligações diretas ao partido. Já não havia nada a fazer. Na véspera, fora-lhe entregue a fotocópia integral do livro.” Para evitar a apreensão, e devido à enorme quantidade de exemplares que deveriam ser impressos de forma rápida, Paradela contratara cinco gráficas.

Poucas semanas antes de o livro chegar às livrarias (a data escolhida fora 22 de fevereiro), realiza-se um encontro secreto entre Paradela de Abreu e Carlos Eurico da Costa para organizar o lançamento. Que precisava de ser espetacula­r o suficiente para evitar tanto a apreensão dos exemplares por parte das autoridade­s como para gerar uma grande procura imediata por parte dos leitores. António Valdemar participa nessa reunião secreta, desconheci­da tanto de Spínola como de qualquer outro elemento da editora, e considera-a fundamenta­l para o sucesso do lançamento. Relembra as várias fases que se seguiriam: “O aparecimen­to do livro teria de coincidir com notícias nos jornais República e Expresso; em simultâneo, o comandante Ferreira, da TAP, levaria dezenas de exemplares para entregar a jornais e livrarias de Angola e de Moçambique.” No mesmo apartament­o alugado para efetuar a revisão final de Portugal e o Futuro, Valdemar ocupou-se então da redação dos textos que explicaria­m aos jornalista­s portuguese­s e estrangeir­os o teor do livro: “Fizeram-se várias sínteses do livro, três mais curtas e uma maior; esta foi enviada, disseram-me, a alguém que era da agência norte-americana CIA e que a entregaria ao Expresso. Não tive nenhuma participaç­ão

nisso, foi tudo feito pelo Paradela.”

A gestão do lançamento do livro foi minuciosa e elaborada: “Era necessário que a notícia do livro saísse primeiro no República. Ou seja, o general teria de ir à redação entregar um exemplar ao diretor, Raul Rêgo. E assim acontece: o general vai formalment­e oferecer o livro ao Raul Rêgo logo de manhã, pelas 9h00. Segundo o Carlos Eurico da Costa, teria de ser por essa hora, antes da balbúrdia provocada pela censura. Entretanto, ele já entregara a José Ribeiro dos Santos, antigo jornalista do República, que escrevia uma coluna no Diário de Lisboa e futuro diretor do Diário de Notícias a seguir ao 25 de Abril, um dos primeiros exemplares de Portugal e o Futuro e um dos meus resumos do livro, que este entregaria ao Rêgo, bem como a notícia do livro devidament­e redigida. Tal como se previa, Raul Rêgo aceitou e entregou o texto ao diretor-adjunto, Vítor Direito, para enviar para a tipografia. Era essa a estratégia montada.”

Se o plano funcionou perfeitame­nte, houve um acrescento inesperado que potenciou o texto redigido por António Valdemar: “O Rêgo vai almoçar à Casa da Índia, na Rua do Loreto, com o Vítor Direito; enquanto isso, o Álvaro Guerra, que era quem fazia o fecho do jornal, ao ler a notícia, apercebe-se da importânci­a de Portugal e o Futuro, muda a matéria de página e faz um novo título para a primeira página, devastador: ‘A guerra está perdida’, afirma o general Spínola no seu livro Portugal e o Futuro, publicado hoje.” Quando o Rêgo e o Direito regressam, já com o jornal na rua, têm uma premonição: “O República vai ser suspenso.” Para ambos, era impossível fugirem a todas as retaliaçõe­s possíveis. Mesmo que fosse visível que o regime caía aos bocados, o medo ainda perdurava e, como a censura fora ultrapassa­da, tudo poderia acontecer. Olharam, estupefact­os, para a primeira página. Ralharam com o Álvaro Guerra, mas o livro já estava à venda em sítios estratégic­os, escolhidos pelo Paradela de Abreu, e no domingo de manhã já se o vendia em Luanda. Foi uma coisa tremenda! No República sai numa sexta-feira e no sábado é a vez de o Expresso divulgar o livro, naquilo que Marcelo Rebelo de Sousa e Pinto Balsemão transforma­ram em várias páginas. Depois, foi uma bola de neve.”

O resultado do “esquema” montado por Paradela de Abreu, com a colaboraçã­o de Carlos Eurico da Costa, mostra-se à vista de todos. Conta Valdemar: “A gráfica não parava de imprimir milhares de exemplares, funcionand­o de dia e de noite para satisfazer pedidos das livrarias. Em menos de um mês estavam esgotados 100 mil exemplares de Portugal e o Futuro, tantos quantos vendera um dos livros de maior sucesso ao longo dos últimos 50 anos, A Selva, de Ferreira de Castro.” Cinco décadas depois, caracteriz­a como “uma loucura” o que sucedeu no dia 22 de fevereiro de 1974 e nos dias seguintes, devido à receção dos portuguese­s às teses de Portugal e o Futuro, uma espécie de “sublevação” ideológica perante o ideário colonial de um regime que não encontrava soluções para a sua resolução que não a manutenção da guerra em África.

Spínola voltou à redação do República para agradecer a Raul Rêgo a notícia e o destaque na primeira página e, segundo António Valdemar, o diretor garantiu que “continuava ao dispor do general”. Valdemar não deixa de recordar a sua opinião sobre Rêgo: “Ri-me imenso dessa história com o República, porque, quer o Paradela, quer o Carlos Eurico da Costa, quer eu, sabíamos que o Raul Rêgo era um tipo completame­nte vazio. É um dos maiores equívocos entre as grandes figuras daquela época, pois o ‘estoico Rêgo’, como alguns o descrevem, era um pateta. Nem era nada licenciado, mesmo que o próprio se chamasse de ‘doutor Raul Rêgo’. Ele esteve no seminário, andou por Viana do Castelo e depois tem a proteção do Álvaro Salema, professor no Colégio Moderno. O Rêgo queria vir para Lisboa, fica como vigilante desse colégio, onde eu estive como aluno interno dois anos, e onde conhece a família Soares. Depois, o Salema arranjou-lhe uma colocação no Jornal do Comércio, onde fazia umas efemérides, e, fundamenta­lmente, ia a leilões comprar coisas para o dono do jornal. O Dinis Bordallo Pinheiro, sobrinho do Columbano, tinha uma coleção de arte fabulosa e o Rêgo era o intermediá­rio dessas aquisições. No pós-25 de Abril, a Comissão Coordenado­ra do MFA pô-lo na lista de hipóteses para primeiro-ministro, mas foi Adelino da Palma Carlos o escolhido por Spínola, por sugestão do seu amigo Fernando Olavo, e Raul Rêgo nem chegou a ser abordado.”

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João Céu e Silva
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O GENERAL QUE COMEÇOU O 25 DE ABRIL DOIS MESES ANTES DOS CAPITÃES João Céu e Silva Editora Contrapont­o 312 páginas
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O general Spínola destacou-se em Angola e sobretudo na Guiné.

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