“Spínola não era o general preferido pelo MFA, mas sim Costa Gomes”
Foi Portugal e o Futuro que criou no regime “o caos governativo e a inação da repressão que os capitães encontraram no dia do golpe”, diz o jornalista João Céu e Silva.
O título do seu livro, O general que começou o 25 de Abril dois meses antes dos capitães, sugere que Spínola teve um papel mais importante na Revolução de 1974 do que o MFA lhe costuma atribuir. Que força tem essa tese? Toda a força. Sem o livro Portugal e o Futuro o regime não estaria no caos governativo e na inação da repressão que os capitães de Abril encontraram no dia do golpe do 25 de Abril. Além de que só com esse livro, uma espécie de bênção de Spínola à rebelião, é que muitos oficiais passaram a apoiar o MFA.
Portugal e o Futuro foi um best-seller imediato. Mas só a elite o leu ou teve alcance popular? As ideias do general sobre a descolonização eram debatidas?
O livro teve um impacto transversal em várias classes e de norte a sul, tanto que em dois meses vendeu 230 mil exemplares. Como o anúncio para a RTP foi proibido, o conhecimento mais generalizado do conteúdo veio pelos títulos dos jornais República e Expresso, os primeiros a dar grande destaque e a focarem-se na ideia de que a guerra em África estava perdida. Era a premissa mais importante para Spínola, que a resumia em seis palavras: “A vitória exclusivamente militar é inviável.” Daí o alcance imediato do livro, pois interessava a todos os que tinham familiares na guerra. Quanto à descolonização, estando muito presente, era num tom suave e maquilhado por uma harmoniosa comunidade lusíada.
A escolha de Spínola para liderar a Junta de Salvação Nacional tem a ver com o seu prestígio militar, mas também com o impacto do livro lançado dois meses antes? Sim. Spínola não era o general preferido pelo MFA, mas sim Costa Gomes, que esteve desaparecido e incontactável no dia 25 de abril. O prestígio de Spínola já era grande antes de publicar Portugal e o Futuro devido ao seu papel enquanto comandante-chefe e governador na Guiné, mas com o livro passou a ser o símbolo da mudança e os capitães foram obrigados a utilizá-lo para sossegarem a opinião pública nacional e estrangeira. Aliás, todos pensaram de início que o 25 de Abril era um golpe liderado por Spínola, perceção que foi acentuada por ser nomeado presidente da Junta de Salvação Nacional ao fim desse dia.
Como se explica a posterior rutura entre Spínola e o MFA? Spínola nunca quis com o seu livro derrubar o regime, mas sim corrigir o rumo da governação e, principalmente, obrigar Marcello Caetano a procurar uma solução política para um conflito que já levava 13 anos. Enquanto esteve na Guiné, o general formou muitos dos oficiais de Abril e deu-lhes ampla cobertura para debater a questão militar, tendo estes beneficiado dessa liberdade e assim ultrapassado o estágio corporativo inicial e criado as bases para o derrube do regime, por não verem outra solução. O objetivo dos capitães não era o de fazer uma revolução, mas apear um regime que estagnara. O apoio popular imediato alterou a correlação de forças e permitiu que capitães que defendiam uma descolonização imediata avançassem no processo, como se verificou em uma semana na Guiné. Este não era o posicionamento de Spínola, um general da velha guarda e defensor do império, que logo entrou em choque com os militares e nunca mais se entenderam.
Abu Sá… quê?!, perguntam os leitores sobre este melro, já decerto esquecidos do seu nome, Abu Salem Abdul Qayoom Ansari, sendo também conhecido por Aqil Ahmed Azmi ou, como se não bastasse, Abu Samaan.
Nasceu em 1969, mas há quem diga que foi em 1968, enquanto outros garantem que viu a luz em 1962, sendo o segundo de quatro irmãos, ainda que jurem também que afinal é o mais velho dos quatro, uma prole da classe média-baixa de Sarai Mir, terra que, tratando-se de uma aldeia, é, de igual sorte, um nagar panchayat, portanto sede de concelho, já na transição do rural para o urbano, isto na Índia, está visto, mais propriamente ao Uttar Pradesh, distrito de Azamgarth, onde o pai de Salem era jurista e julgo que garagista antes de morrer num acidente rodoviário, de modo que o jovem Abu teve de interromper os estudos (onde já não ia bem) e foi trabalhar como taxista para Nova Deli, em 1985, passando depois a Mumbai, ano seguinte, mas agora como ajudante de padeiro e distribuidor de carcaças nos subúrbios da cidade, profissão que trocaria pela de lojista de roupas e, mais tarde, mediador imobiliário. Data daí, coisa de 1988, o seu primeiro contacto a quente com as autoridades, diz-se que por ter agredido um colega de trabalho, mas estranha-se muito que aWikipédia pouco esclareça o caso e informe, logo na frase seguinte, que, entretanto, Abu casara com Samira Jumani, que era de Jogeswhari, e da qual teve dois filhos, minto, um, e rapaz, elucida a enciclopédia linhas abaixo, desdizendo o que afirmara linhas acima e mais notando que Samira Jumani tinha 17 anos quando casou, que isso foi em 1991, e que ela, a Samira, vive actualmente em Duluth, Gwinett County, Georgia, EUA, de onde tem emitido opiniões muito desfavoráveis sobre o ex-cônjuge, com o qual, garante, a matrimoniaram à força. Em depoimentos à media, classifica-o, e cita-se, como “um homem psicótico violento”, o que, claro está, não dá saúde a qualquer relação, menos ainda a um casamento, instituição já de si exigente e difícil mesmo sem tais violências e psicotiquices. É possível, mas não provável, que aquele retrato do ex-marido, tão cáustico, tão áspero, tão agreste, fique a dever-se a despeito, a atrasos nos alimentos, mas tudo indicia, e é pena, que Abu é mesmo um bruto.
Foi esse, pelo menos, o entendimento dos magistrados da União Indiana que o quiseram julgar por actos de muita gravidade e, por isso, nos pediram que lho devolvêssemos, invocando para o efeito a Convenção de Nova Iorque, nome abreviado da Convenção Internacional para a Repressão de Atentados Terroristas à Bomba. A partir de então, e na sempre maravilhosa linguagem dos tribunais portugueses, Abu passou a ser sistematicamente tratado como “o extraditando”, nome que acresce e complementa aos outros quatro que já tinha de berço, como vimos supra.
Mas que fizera Abu para merecer tanta desdita?Voltemos à internet: na década de 80 começara a trabalhar com o primo Akthar numa loja de artigos electrónicos baratos, junto à estação ferroviária de Andheri, estabelecimentos que por cá chamamos “lojas dos indianos”, ou coisas piores, mas que na Índia, por razões evidentes, se designam antes por “lojas de artigos electrónicos baratos”. Depois, vá-se lá saber como e porquê (e é nestas coisas sumarentas que aWikipédia falha muito), Abu envolveu-se na D-Company, nome por que era conhecido o império criminoso fundado e gerido com mão de ferro e punho de aço por Dawood Ibrahim Kaskar, um dos maiores vilões do subcontinente, a ponto de, em 2004, a Índia e os EUA o terem designado mesmo por “terrorista global” e que o FBI colocou em n.º 3 na lista dos 10 mais procurados do planeta, à conta de um vasto cardápio de malfeitorias: ele foi muito assassínio, ele foi muita extorsão, ele fori bastantes raptos, foi muito tráfico da droga e até, parece, algum terrorismo. Abu, consta, começou por motorista da companhia, entre 1989 e 1993, mas depois foi subindo ou descendo, consoante a perspectiva com que analisemos o seu percurso no lodo, do qual poderão ter uma pálida noção através de um perturbante documentário da Netflix intitulado Máfia de Bombaim: Polícia vs. Submundo do Crime, de 2022. Sinopse: “Em Bombaim, nos anos 90, um senhor do crime e a sua rede governam a cidade sem limites, até à ascensão dos ‘polícias de encontro’, que matam brutalmente os seus alvos.”
A máfia de Bombaim, uma organização tentacular poderosíssima, teve acções muito sangrentas e muito bárbaras, mas nenhuma tão grave como os atentados de 12 de Março de 1993. Durante anos, discutiu-se se tinham sido 12 ou 13 ataques à bomba, perpetrados quase em simultâneo e em locais apinhados de gente da cidade de Bombaim/Mumbai, como a Bolsa de Valores, dois hotéis de porte médio e a entrada de um centro comercial. Uma carnificina atroz: em poucas horas, 257 mortos e cerca de 1400 feridos, muitos dos quais muito graves. Diz-se que a mortandade surgiu na sequência dos sangrentos tumultos entre hindus e muçulmanos de 1992-1993, nos quais, entre outras crueldades de parte a parte, activistas nacionalistas demoliram a Mesquita de Babri Masjid, erguida no século XVI por um general mogol sobre os restos do que se acredita ser o local do nascimento de Rama. Ora, como Dawood Ibrahim era muçulmano (e nunca se livrou da suspeita de conexões com a Al-Qaeda), decidiu fazer uma demonstração do seu poder e, para esse efeito, ordenou um atentado com 12 ou 13 bombas a explodirem em simultâneo, ou quase. Na altura, Dawood vivia já no Paquistão ou, o que é mais credível, no Dubai, e, em comandita com outros patifes, coube a Abu Salem tratar da logística do morticínio, após o que também ele se escapuliu para o Dubai, onde abriu uma empresa com o nome catita de Kings of Car Trading.
Além dos atentados bombistas, Abu Salem, dizem, recrutava assassinos a soldo entre os jovens muçulmanos da sua terra natal e esteve implicado num aterrador esquema de extorsão às estrelas de Bollywood, isto apesar de ser um cinéfilo devoto. Muitos directores de cinema, actores e actrizes pagaram quantias astronómicas pela chantagem, outros acabaram mortos ou escaparam por um triz de ser assassinados pelos esbirros de Salem, que se acredita ter sido também o mentor do homicídio, em 1997, do barão da música Gulshan Kumar, fundador da mítica Super Cassettes Industries Limited, também conhecida por T-Series, que ainda hoje possui o canal mais visto doYouTube, com mais de 246 milhões de subscritores e, pasme-se, 229,4 mil milhões de visualizações até 1 de Agosto de 2023, números que nos mostram o que é a dimensão colossal da Índia e dos seus povos e também, de igual sorte, o que era o poderio do homem que Salem matou. E matou, garantem, sem que o patrão Dawood tivesse autorizado o homicídio, o que representou mais dos pontos de atrito que já então existiam entre os dois malandros e que acabaram por levar Salem a abandonar o Dubai, rumo a parte incerta.
É aqui que entramos nós, Jardim da Europa à beira-mar plantado / de loiros e de acácias olorosas; / de fontes e de arroios serpeado, / rasgado por torrentes alterosas, / onde num cerro erguido e requeimado / se casam em festões jasmins e rosas;/ balsa virente de eternal magia / onde as aves gorjeiam noite e dia, como nos cantou o grande Tomás Ribeiro no imortal poema A Portugal, de 1862 (gosto particularmente da parte da “balsa virente de eternal magia onde as aves gorjeiam noite e dia”).
À semelhança de muitos que nos procuram pela amenidade do clima, pela pacatez das ruas, pelas delícias da gastronomia, pelos sortilégios do bacalhau com grão, Abu Salem Abdul Qayoom Ansari decidiu fixar-se por terras de Portugal, no coração da velha Lisboa, no bairro da grande Severa. Sendo homem de maus fígados, mas de bom gosto, fez-se acompanhar da senhorita Mónica Bedi, cujo retrato convém muito que consultem, e que era, e é, uma moça nascida no Punjab aos 18 dias do mês de Janeiro de 1975, sendo filha legítima de Prem Kumar Bedi e de Shakuntala Bedi, casal que, em 1979, se mudou com ela de Hoshiarpur, no Punjab, para Drammen, na Noruega. Perguntais então, e bem, porque é que a estouvada da Mónica Bedi, estando tão bem na Noruega, foi acabar o curso à Universidade de Deli, em 1995. Não sabemos. Mas sabemos, porque isso é do domínio público, que logo no ano da formatura se estreou no cinema telugu com uma película de título desinspirado e turístico, Taj Mahal, produzida por Daggubati Ramanaidu, um homem já falecido, mas que, antes disso, deu entrada no Guinness como o indivíduo que, a título individual, mais filmes produziu na vida, para cima de uns 150 – e em 13 línguas.
Depois disto, Mónica fez outras fitas, entrou nos reality shows Big Boss Season 2, Jhalak Dikhhla Jaa 3 eDresi Girl e cantou os cânticos Ek Onkar para um álbum de música espiritual da Universal Música. Sendo o Ek Onkar, ou Ik Onkar, uma espécie de hino religioso, não vamos cometer a blasfémia de dizer que Abu Salem e Mónica Bedi foram apanhados pela Judiciária quando estavam a “ekonkar”, ou a “ikonkar”, no n.º 284 da Rua da Palma, em Lisboa, paredes-meias com a sede do Bloco de Esquerda, com o SupermercadoWang, com o Centro de Apoio e Serviço à Comunidade Chinesa (no n.º 266-D da mesma artéria) ou com o Shere Punjab Supermercado (este um pouco mais acima, quase a chegar à D. C. Kebab House e àsWellcome Suites).
A crer no trepidante relato do India Today, de 7/10/2002, Abu foi preso na zona de Chelas, perto da Expo, ao final da tarde de 18 de Setembro de 2002, na sequência de uma perseguição automóvel que culminou com o jipe Cherokee do fugitivo a embater num separador lateral da via e, depois, com a sua detenção e algemamento pela polícia. Mónica Bedi seria detida numa aparatosa operação na Rua da Palma, descrevendo-a o India Today como uma “sereia esbelta” que, “vestida com roupas de grife, descia escadas de madeira”. Há três meses que as autoridades andavam no encalço do hediondo e da sereia das escadas de madeira, tendo conseguido descobrir os seus nomes falsos (a saber, e entre outros, Ramil Kamal Malik, Danish Beg, Akhil Ahmed Azmi, Arsalan Mohsin Ali e Ramesh Kumar) e tendo também rastreado os seus nove telemóveis e três telefones por satélite, que deram nota de que Abu era um frenético globetrotter: pouco antes de aterrar em Lisboa, entrara e saíra de Londres, do Dubai, de Singapura, de Katmandu, de Atlantic City, de Nova Iorque, de Chicago e de Zurique. Já tinha estado preso nos Emirados, em 1997, e fora detido em Abu Dhabi em 2001, de onde fugiu para o Quénia. A origem de um dos seus passaportes falsos, segundo o FBI, era a mesma da documentação de quatro importantes suspeitos dos ataques do 11 de Setembro. Diz-se também que, para acompanharem os movimentos de Abu Salem, as polícias beneficiaram de um informador de peso, o seu arquirrival Chhota Shakeel, também membro sanguinário da D-Company, e sobre o qual se diz que terá morrido, mas nunca fiando. Salem esteve quase a ser preso em Lisboa em Agosto, mas fugiu para a América. Aí, deu nas vistas, farejou o perigo, regressou às pressas para a capital alfacinha, mais acolhedora e amiga, e alojou-se perto dos dele, ao Bairro da Mouraria.
“Lisboa parecia um porto seguro, pois ele poderia se misturar entre a grande população de imigrantes asiáticos de Goa e Moçambique”, escreveu o India Today, informando que, apesar da sua colossal fortuna, Abu optou por se hospedar num hostel de baixo custo, mas quer ele quer Mónica não deixaram de investir no imobiliário, adquirindo algumas propriedades (davam os Anjos como domicílio), e, “para surpresa da polícia portuguesa” (e nossa), “até conseguiram uma autorização de residência para viver em Portugal”. Para evitar acusações de xenofobia e racismo, ou de simpatias cheguistas, abstemo-nos de perguntar como é que um foragido internacional, milionário e perigosíssimo, com suspeitas de ligação à Al-Qaeda e constante da lista dos mais procurados pelo FBI, consegue obter tão tranquilamenum
te – e tão rapidamente, note-se – autorização de residência em Portugal. Até os vizinhos da Mouraria, a quem Abu dizia ser paquistanês, estranharam o seu trem de vida, opulento e bizarro, mas abstiveram-se de mais perguntas, pois, parece, ele era conhecido por arranjar documentos de viagem para imigrantes asiáticos ilegais.
Foi, aliás, pela posse de documentos falsos que Abu e Mónica seriam detidos. Na prisão de Tires, Abu esbracejou que era paquistanês e que se chamava Ali durante três horas, o tempo necessário para que a Judiciária concluísse que as suas impressões digitais coincidiam com as que lhe foram tiradas em Bandra, 18 anos antes. Mais tarde, cruzar-se-ia com Carlos Cruz na Penitenciária de Lisboa, como este, aliás, refere nas suas memórias de cárcere.
A União Indiana, é evidente, requereu a extradição do bandido, sobre a qual o procurador-geral da República emitiu parecer favorável, dado as garantias dadas pelos indianos de que não iriam aplicar a pena de morte nem sequer a prisão perpétua. Em Março de 2003, a ministra da Justiça emitiu despacho favorável à extradição, mas o extraditando opôs-se por todos os meios a que tal sucedesse, pois, já vimos, gostava muito de Portugal, estando rendido aos lusos encantos.
Principiaram então os tagatés da justiça: o Tribunal da Relação disse OK à extradição, o Supremo anulou o acórdão da Relação, mandou fazer outro novo, a Relação assim fez, confirmando a extradição, excepto quanto à pena de morte e à prisão perpétua. Por motivos e com fundamentos naturalmente distintos, o Ministério Público e o extraditando recorreram para o Supremo, onde o juiz relator solicitou mais garantias à Índia, que jurou a pés juntos que jamais aplicaria a morte ou a prisão perpétua ao rapaz, mas apenas e tão-só, e se fosse caso disso, uma prisão de 25 anos. O Supremo autorizou então a partida, por acórdão de Julho de 2004, mas o extraditando atravessou pedido de nulidade, que o Supremo indeferiu, em Março de 2005. Abu apresentou dois recursos para o Tribunal Constitucional, um do acórdão de 2004, outro do de 2005, mas o Constitucional não conheceu de um deles e, quanto ao outro, negou provimento.
Havendo, pois, a garantia de que este bruxo do Salem jamais seria condenado à pena capital ou perpétua, mandaram-no para a Índia. Sorte madrasta: em 2013, quando estava na Prisão de Taloja, foi alvejado numa mão por outro recluso; em 2010, envolveu-se numa violenta rixa com outro gangster, Mustafa Dossa, que o desfigurou no rosto com uma colher afiada. Enquanto isso, em 2015 um tribunal condenou-o a prisão perpétua pelo homicídio do construtor civil Pradreep Jain e, como se não bastasse já uma, levou com nova prisão perpétua em 2017, desta feita pelos atentados de Bombaim, e em 2018 seria condenado a mais sete anos de cadeia por extorsão a um homem de negócios. Valeu-lhe a música, parece, já que, em 2013, Sukha Delhi, um afamado cantor do Punjab, anunciou que uma das canções do seu próximo álbum fora composta por Abu Salem, o qual, parece, cumpre pena na Prisão de Arthur Road, a maior e mais antiga prisão de Bombaim, ou Mumbai, conhecida pelas suas brigas entre gangues rivais.
Mónica, entretanto, foi condenada em Portugal por uso de documentos falsos, cumpriu por cá dois anitos de cadeia, pediu clemência ao primeiro-ministro do seu país, mas acabou extraditada, tendo os tribunais do seu país considerado, no entanto, que já prestara contas com a justiça, podendo, pois, ser libertada. Em entrevistas recentes tem dito que aquele amor louco pelo Abu Salem prejudicou e continua a prejudicar muito as suas carreiras, quer profissional, havendo escassez de convites, quer sentimental, domínio em que diz estar hoje muito mais precatada e recatada, resistindo às muitas ofertas de homens mais novos em prol de um relacionamento mais estável e duradouro, no qual ainda não perdeu a esperança. Olha, Mónica, que sejas tu muito feliz, que tanto e muito o mereces. Mas, se te faltar alguma coisa lá por essas bandas, tens sempre aqui um país mimoso muito à tua espera, n.º 284 da Rua da Palma, sem mágoas nem ressentimentos, hard feelings de espécie alguma. Para mais – é importante dizê-lo –, Mónica teve ensejo de afirmar, no programa televisivo Raaz – Pichhle Janam Ka, que numa anterior reencarnação tinha sido portuguesa, ademais casada e com três filhos. Graças a uma terapia de regressão, disse, percebeu enfim a razão pela qual “me senti sempre em casa quando estive em Portugal” (Correio da Manhã, de 26/11/2009). Talvez seja a reencarnação a razão, talvez, mas também, ousamos supô-lo, a proverbial hospitalidade portuguesa, o carinho e a ternura do nosso povo, o calor do coração, coisas que decerto fizeram que a sua estada em Lisboa tenha sido aprazível e recompensante, mesmo que na companhia de um foragido internacional de alto calibre, suspeito de duas centenas de mortes.
O advogado português de Abu Salem, o Dr. Manuel Luís Ferreira, apresentou uma queixa contra Portugal e contra a União Indiana no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, alegando que os dois países estavam a violar o acordo de extradição do seu cliente. Ao mesmo tempo, intentou uma acção no Tribunal Administrativo de Lisboa para que Abu Salem seja devolvido a Portugal. Em Julho de 2022, o Supremo Tribunal da União Indiana, dando razão a Salem, disse que este não poderia ser condenado a mais de 25 anos de cadeia e que, em função disso, o governo deveria aconselhar o presidente a conceder um indulto. Um procurador do Ministério Público disse que o governo iria cumprir “num momento apropriado” a garantia dada ao Executivo português, até porque este, dizem, não achou graça àquelas prisões perpétuas, quando antes lhe haviam dito e redito, jurado até, que 25 anos era o máximo. O incidente, diz-se, abriu um conflito diplomático de média intensidade entre os dois países, com o Tribunal da Relação a tomar a decisão de anular a extradição e a reclamar Abu de volta. Na véspera de uma visita de António Costa àquele país, os jornais noticiaram que este era um dos “irritantes” dessa viagem, já que o Supremo Tribunal de Justiça, não dando razão aos argumentos do Dr. Rui Patrício, advogado da União, decidiu mesmo revogar a extradição. Questionado sobre o que sucederia a seguir, o Supremo remeteu para o governo, mas o porta-voz do primeiro-ministro, interpelado nas vésperas da partida de Costa, disse não ter informação sobre se o tema iria ser abordado com as autoridades hindus, o mesmo tendo sucedido com o Ministério dos Negócios Estrangeiros. A defesa de Abu Salem insistia, de seu lado, que o único delito que ele cometera era posse de arma proibida, apenas isso (cf. Público, de 11/1/2017).
Pouco antes, a ministra Francisca van Dunen negara outro pedido de extradição feito pela Índia, desta feita de Paramajeet Singh, que Nova Deli considera ter sido o maior financiador do movimento Babbar Khalsa Internacional e, depois, aliado do movimento Tiger Forece, Jagtar Singh Tara, com ligações a grupos armados sediados no Paquistão. Paramajeet Singh foi detido num hotel de Albufeira, mas tinha estatuto de refugiado concedido pelo Reino Unido, que lhe concedeu asilo (e a profissão de taxista em Birmingham), e, por isso, podia viajar por vários países europeus, inclusive Portugal. O seu advogado,
Manuel Luís Ferreira, membro da Associação de Advogados Sem Fronteiras de Língua Portuguesa, que saudou esta “decisão corajosa” e este “virar de página” na justiça portuguesa, é, já o dissemos, o mesmo de Abu Salem. E, aliás, já antes defendera com êxito George Wright, que a Relação decidiu não extraditar para os EUA por considerar os crimes prescritos. George Wright prefere usar o seu nome português, José Luís Jorge dos Santos, ou apenas Jorge Santos, que adquiriu quando passou pela Guiné-Bissau, onde, entre outras coisas, foi treinador da equipa do Banco Nacional da Guiné e do Benfica de Bissau, além de ter chegado a fazer traduções para a embaixada norte-americana nesse país (!). Em Portugal, onde se fixou e casou, tendo dois filhos – e, por via do matrimónio, a nacionalidade portuguesa –, fez um pouco de tudo, desde pintor da construção a um take-away de frango assado e a um restaurante em Alcabideche, passando por um quiosque de artesanato no centro da vila e até por barman na Base da NATO em Oeiras, uma instalação de elevada segurança. Em Sintra, onde é uma figura estimada, tratam-no por “senhor Jorge” e os vizinhos consideram-no “simpático”, tendo ficado espantados ao conhecer o seu passado tão rico e tão agitado.
Menos sorte teve Jaime Gimenez Arce, “El Solitario”, um assaltante a bancos e homicida do país vizinho, alcunha derivada por actuar a solo, o qual acabou detido na Figueira da Foz em Julho de 2007, quando, num copy cat de Palma Inácio e da LUAR, se preparava para atacar uma instituição bancária figueirense. Acabou extraditado para Espanha e condenado por um tribunal de Zamora a 13 anos de cadeia. Ainda assim, fez escola, deixou legado: Dulce Caroço, a “Viúva Negra”, uma cabeleireira da Costa de Caparica que, com uma arma falsa, assaltou 11 bancos na região de Lisboa entre 2011 e 2012, reconheceu ter-se inspirado na figura de “El Solitario” para praticar crimes a título individual. Passou cinco anos na cadeia, hoje é cabeleireira de novo, e só muito a custo aceitou o repto para colaborar numa série com a sua história, Vanda, de Patricia Muller, com Gabriela Barros no papel principal.
Enquanto isto decorre, Abu Salem apodrece numa prisão de alta segurança do seu país. Talvez seja bem feito, mais do que merecido. Mas que nos enganaram a nós, portugueses, ah, disso não haja dúvida.
* Prova de vida (32) faz parte de uma série de perfis.