Onde eu estava
é ator, encenador, produtor e ficcionista. Nasceu em 1953, em Lisboa. A 26 de fevereiro do ano da revolução completou 21 anos.
A13 de fevereiro de 1974 não sei o que se passou comigo, mas sei o que fiz nesse dia. Fui trabalhar de dia e estudar à noite, como de costume. No emprego, éramos para aí uns sete ou oito e encontrávamo-nos numas salas vazias por cima do Pão de Açúcar de Alcântara, que deviam ter pertencido a fábricas de qualquer coisa, mas estavam meio abandonadas, e o nosso trabalho consistia em reorganizarmos o sistema de controlo dos empregados dos supermercados da cadeia que dava o nome à empresa. Tinham começado a aparecer os relógios de ponto com os cartões em que os funcionários provavam que tinham começado a trabalhar à hora x e acabado à hora y. O que nós fazíamos era uma espécie de double check das presenças e ausências.
Já não me lembro como fui ali parar, no meio daquele grupo de universitários, nem em que consistia exatamente o nosso trabalho.
Lembro-me que morava nos Olivais Norte e apanhava todos os dias o transporte na carreira 22 da Carris que ia para o Alto de
Santo Amaro e me deixava no Largo do Calvário de onde seguia a pé para o trabalho. Ia quase sempre a dormir no primeiro banco do andar de cima do autocarro que àquela hora (sete da manhã) estava muitas vezes vazio. Só começava a abrir um olho de cada vez, depois do Largo da Estrela e a descer a Infante Santo. Até lá devia roncar que nem um perdido, estatelado no banco de três lugares, deixando libertar o remanescente dos excessos noturnos dos meus vinte e um anos.
Mas 31 dias depois daquele, nos idos de março, mais precisamente a 16, quando cheguei junto dos colegas, já razoavelmente acordado, percebi imediatamente a excitação que havia no ar. uma coluna de blindados dirigiu-se a Lisboa para acabar com o Estado Novo que já estava demasiado velho, mas os heróis tiveram de voltar atrás por falta de apoio. Foi o ensaio geral do 25 de Abril. Eu, como tantos outros miúdos que não eram filhos de privilegiados, exultámos com a possibilidade de se mudar a cor ao Portugal cinzento.
Ficámos todos cautelosamente eufóricos, não fosse haver algum bufo no meio de nós, porque a rádio estava a dizer que tinha havido uma tentativa de levantamento militar. Fiquei naturalmente excitado e a ressaca da noite anterior desapareceu por milagre como se tivesse tomado não um, mas um tubo inteiro de Guronsan. Ainda por cima a rádio (talvez fosse o Rádio Clube Português, não sei) estava a passar o Que força é essa do Sérgio Godinho com tudo o que isso poderia significar de inusitado naquela altura. Estaria a revolução na rua?
Não estava. Ainda. Mas não demorou muito mais tempo. Quarenta dias depois, a 25 de Abril de 1974, vinha eu de novo a dormir no banco do andar de cima do 22, e acordei mais cedo do que o Largo da Estrela. Foi logo na Portela. Os paraquedistas tinham tomado o aeroporto e o levantamento militar era agora a sério. Assim que cheguei junto dos meus colegas de escritório, em Alcântara começamos logo a colaborar no levantamento civil.
Andámos o dia todo no Mini de um deles a acompanhar alegremente as tropas revoltosas cujas comunicações apanhávamos no rádio do carro. Premonitoriamente o nosso colega dono do Mini chamava-se Cravo.
[16 de março de 1974] Eu, como tantos outros miúdos que não eram filhos de privilegiados, exultámos com a possibilidade de se mudar a cor ao Portugal cinzento.