Diário de Notícias

Os 50 anos da Revolução de Abril, tal como os 500 anos de Camões, tornaram-se longínquas evocações históricas, abafadas pelo ruído avassalado­r do presente, que limita o nosso espírito e, nesse sentido, coage a nossa liberdade.”

- Diplomata e escritor

Acaso o nosso destino, tac!, vai mudar? (Alexandre O’Neill)

Ocinquente­nário do 25 de Abril veio mostrar bem a distância que o tempo e a História puseram entre nós e aquele momento libertador. Não obstante o trabalho persistent­e e a competênci­a de Maria Inácia Rezola e da sua equipa, o intenso debate político, que o extraordin­ário calendário eleitoral deste ano nos veio impor, passou para trás a memória, tão necessária, de Abril.

Todos os líderes políticos que assumem hoje as nossas campanhas eleitorais nasceram depois do 25 de Abril. A ideia que fazem do Antigo Regime e da Revolução chegou-lhes através da tradição oral familiar, das leituras e da sua própria formação intelectua­l.

E nós sentimos Abril em perigo. É lamentável que a memória da refundação da democracia em Portugal seja hoje abafada pelo clamor das campanhas. Mas, afinal, não será a melhor homenagem ao 25 de Abril a realização de eleições como única saída para resolver todas as crises e nós górdios que estamos a enfrentar?Vontade popular e eleições sim, justiceiro­s populistas não!

Enquanto os nossos destinos se jogam nas campanhas eleitorais e nas denúncias anónimas ao Ministério Público, que todos os dias saem nos jornais, é difícil voltar o espírito e a atenção para qualquer coisa diferente.

Pensar que, no cinquenten­ário do 25 de Abril e no meio de uma grave crise de todos os equilíbrio­s precários da comunidade internacio­nal, estamos a discutir o que fazer com a extrema-direita, numa reevocação sinistra dos debates dos Anos 30 enche-nos de pavor. Ou, como melhor disse Fernando Pessoa: “A minha inteligênc­ia tornou-se um coração cheio de pavor.”

A injunção aos vindouros que Bertolt Brecht no seu tempo nos dirigiu – “Que tempos são estes, em que falar de flores é quase um crime porque significa calar diante de tanta injustiça?” – continua a repercutir em nós e torna difícil até a este cronista discorrer hoje sobre outra coisa que não a atualidade política.

Os 50 anos da Revolução de Abril, tal como os 500 anos de Camões, tornaram-se longínquas evocações históricas, abafadas pelo ruído avassalado­r do presente, que limita o nosso espírito e, nesse sentido, coage a nossa liberdade.

Claro, há também os indiferent­es, não os indecisos, essa parte do eleitorado donde se diz que saem as maiorias, mas toda essa gente que vive o seu dia a dia alheada da política, concentrad­a nos problemas e dificuldad­es da sua vida quotidiana e descrente de quaisquer mudanças.

Eu tenho vergonha, pela minha geração, de deixar aos meus netos um mundo ao qual todos os horrores do passado, sem exceção, parecem querer vir regressar.

Mas alguma vez na História houve épocas livres de sofrimento, violência e opressão? O oásis de paz que Stefan Zweig descreve idilicamen­te no seu O Mundo de Ontem, não foi atravessad­o por miséria, guerras balcânicas, perseguiçõ­es aos judeus, lutas sociais e atentados? E o genocídio dos africanos na Namíbia pelos colonizado­res alemães e o antissemit­ismo militante de Lueger emViena não prenunciav­am já qualquer coisa?

Como Jorge de Sena disse (e mais uma vez passo a palavra aos poetas) na sua Ode ao Futuro:

Falareis de nós como de um sonho (...)

E as tempestade­s, as desordens, gritos, violência, escárnio, confusão odienta, (...) as prisões, as mortes, o amor vendido, as lágrimas e as lutas, o desespero da vida que nos roubam – apenas uma angústia melancólic­a, sobre a qual sonhareis a idade de ouro. Só espero que os meus netos vivam num mundo suficiente­mente decente para nunca poderem pensar na nossa época como uma “idade de ouro”.

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