Ensaio nulo no triplo sobressalto
Ressalva: é possível que a avó materna de Mariana Mortágua tenha ficado sobressaltada com a carta do senhorio, ainda para mais tendo na família quem veja em cada proprietário de imóveis um duque de Lafões, dono da herdade da Torre Bela.”
Passaram quase duas décadas desde o que talvez tenha sido o momento mais lamentável que, até hoje, ocorreu num debate eleitoral em Portugal, por muito que o recorde pareça sempre à beira de ser batido. Estavam Francisco Louçã e Paulo Portas num estúdio da SIC Notícias, no início de 2005, quando os portugueses se preparavam para dar maioria absoluta a José Sócrates, quando o bloquista pretendeu fulminar o líder centrista, e proclamou, com a sua expressão de terrível Ivan do filme de Eisenstein, que Portas não tinha direito a falar sobre a interrupção voluntária da gravidez.
“O senhor não sabe o que é gerar uma vida. Eu tenho uma filha. Sei o que é o sorriso de uma criança”, disse Louçã, arremessando a descendência que tinha mais à mão contra o adversário político. De forma tão equivoca que, mais tarde, condescenderia que, apesar da justeza da sua indignação face ao julgamento de mulheres que haviam abortado, teria sido preferível dispensar o argumento para evitar “ambiguidades”. E remataria que “no debate político está-se sempre a aprender.”
No início de 2024, quando os portugueses preparam a despedida da maioria absoluta de António Costa, Mariana Mortágua e Luís Montenegro encontraram-se num estúdio da TVI. E a bloquista recorreu à ascendência no debate com o social-democrata, saltando da crise na habitação dos nossos dias para o Novo Regime de Arrendamento Urbano, que o seu partido apelidava de “Lei Cristas” quando a ex-presidente do CDS-PP ainda disputava eleições.
“Lembro-me de uma lei das rendas, em que as pessoas idosas recebiam uma carta, e, se não respondessem durante 30 dias, a renda aumentava para qualquer valor e podiam ser expulsas. Vi idosos a serem expulsos, conheço o pânico que era receber uma carta do senhorio. Vi o sobressalto da minha avó ao receber cartas do senhorio, porque não sabia o que lhe ia acontecer, e essa foi uma responsabilidade do PSD, que esvaziou as cidades”, disse Mortágua, juntando a mãe da sua progenitora à filha do seu mentor na luta contra a maléfica direita, supostamente ansiosa de desalojar em massa no passado, no presente e no futuro.
Mas o ensaio de triplo sobressalto correu mal à coordenadora bloquista. Passou as horas seguintes ao debate a ser ridicularizada, pois a legislação que veio descongelar os valores pagos por inquilinos com contratos de arrendamento anteriores a 1990, e a facilitar o despejo de quem optasse por não pagar ao senhorio, acarretava salvaguardas como a proteção a quem tivesse mais de 65 anos e o período transitório de cinco anos para quem tivesse menos do que essa idade, mas rendimentos mensais inferiores a cinco salários mínimos, sendo mais tarde acrescentada a possibilidade de um subsídio de renda atribuído pelo Estado.
Instada no debate seguinte a esclarecer se a avó tivera algum problema real após a correspondência do senhorio, Mortágua percebeu que fizera um ensaio tão nulo quanto o do sorriso da filha de Louçã. E lá deixou cair o tema. Mas tendo a sua mãe conhecido o seu pai, Camilo Mortágua, 20 anos mais velho, aquando da ocupação da Herdade da Torre Bela, no PREC, Maria Inês Rodrigues terá nascido em 1955 (a data não consta do currículo que acompanha as suas nomeações em Diário da República), pelo que a avó só teria menos de 65 anos em 2012 caso tivesse dado à luz na infância.
Como é óbvio, tal não sucedeu. A senhora que foi utilizada pela neta como argumento eleitoral tinha então idade suficiente para ser protegida de aumentos de renda consideráveis. Aliás, no podcast “Fala com Ela”, disponibilizado há 19 semanas, Mariana Mortágua falou com Inês Meneses da avó, ainda a viver na Avenida de Roma. Descreveu-a como uma “pessoa politicamente ativa”. E talvez até seja avessa ao populismo que já não é útil para a democracia se praticado por quem o exerce com mestria e ainda mais pechisbeque fica em quem carece do valioso treino dos debates futebolísticos.
Ressalva: é possível que a avó materna de Mariana Mortágua tenha ficado sobressaltada com a carta do senhorio, ainda para mais tendo na família quem veja em cada proprietário de imóveis um duque de Lafões, dono da herdade onde a filha conheceu o pai das suas netas. Em sentido contrário, recordo-me do sobressalto do meu avô materno, que nasceu pobre há 120 anos, investiu o fruto de uma vida de trabalho em prédios, e passou os últimos anos a fazer contas de subtrair, com cada despesa de reparação ou manutenção a tornar deficitário um edifício com 20 apartamentos, pois os inquilinos pagavam há décadas os mesmos 700 escudos (três euros e meio) pelo direito inalienável de viverem numa avenida de nome imperialista. E que até se cruza com a homóloga de Roma.