Diário de Notícias

O colecionad­or de dicionário­s

- Carlos Rosa e diretor do IADE – Faculdade de Tecnologia e Comunicaçã­o da Universida­de Europeia

Afonso Morgado Lopes nasceu em Fevereiro de 2024. Hoje tem 52 anos. Viveu toda a sua juventude entre aquilo que os pais lhe traziam de um passado vintage, dizia ele, e uma vida digital, incipiente e intangível, fruto dos avanços exponencia­is da Inteligênc­ia Artificial.

Afonso é o resultado de uma série de evoluções biotecnoló­gicas. Começando, imagine-se!, pelo seu próprio nome que foi o resultado de uma votação no TikTok de uma lista de nomes gerada pelo ChatGPT: Afonso porque é um nome histórico para Portugal, Morgado por ser o primogénit­o e Lopes porque a sua família é original dos ancestrais tempos medievais.

Tem um rim novo, fruto de um projeto-piloto liderado pelo Media Lab do MIT, um braço biónico, resultado de um acidente sofrido na faculdade e um olho digital, com o qual, finalmente, aos 18 anos, lá se conseguiu corrigir uma catarata congénita.

Fez todos os seus graus de ensino a meias com as tecnologia­s de IA e grande parte dos seus amigos, nunca os conheceu em carne e osso, ficando, por isso, a dúvida se eles realmente existiam ou não.

Nunca tirou a carta, mas o seu carro elétrico consegue conduzi-lo a todo o lado, fruto da tecnologia do piloto automático.

Fez parte de uma licenciatu­ra em Engenharia Informátic­a, mas logo no 2.º semestre do curso desistiu e ingressou em Filosofia.

Afonso viu na Filosofia a possibilid­ade de uma demanda pelo seu “eu” original. E fruto desta demanda, desde muito novo que começou a colecionar dicionário­s.

Afonso tornou-se num tipo solitário que tem dicionário­s para tudo, e procura, procura, mas não consegue vislumbrar em nenhum deles a sua própria definição. Desde a História Natural aos grandes avanços da IA, passando pelos Grandes Atlas e até pelos escritos mais ancestrais, nada, mas mesmo nada saciava a demanda de Afonso. Dos digitais aos de papel, passando pelos escritos antigos em latim e em grego, Afonso lá procurava uma ordem natural para as coisas, para as suas coisas e nada!

Anatole France disse em tempos que “um dicionário é um universo em ordem alfabética” e Afonso, quase a chegar à letra Z começa a entrar em desespero por saber quem realmente é. Afonso sente-se um esqueleto sobre o qual é impossível tecer uma citação, sente-se como uma palavra mal escrita num dicionário, mas que, como está num dicionário, ninguém tem como saber se ela, ou seja, ele, é verdadeiro ou não.

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