Onde eu estava
Artur Lopes Cardoso nasceu em 1952, em Lisboa. É tradutor. Tem quatro filhos e quatro netos.
Em fevereiro de 1974, já se tinha percebido que a Primavera Marcelista era apenas fogo de vista, que nada ia mudar, embora houvesse alguns zunzuns de que nem tudo estava bem no país da “habitualidade”, a palavra com que Franco Nogueira definiu a era Salazar.
Tinha 22 anos, estudava vagamente, trabalhava vagamente, iniciara havia pouco uma relação com a que viria a ser a minha segunda mulher e sobrava-me tempo para farrear o mais possível.
Era, e sou, o produto atípico de uma família tradicional, com pai juiz-conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça e mãe dona de casa, transportando todas as virtudes e defeitos das famílias em que o estatuto é benesse e ónus, e o que vem de trás pesa sobre nós desde o dia em que nascemos. O meu pai fora ministro na Primeira República,
pertencia ao chamado Reviralho e, por conseguinte, lá em casa não se venerava o regime.
Fiz a primária no Lar Educativo João de Deus, o liceu no Pedro Nunes e depois, seguindo a tradição familiar, entrei para Direito. O prof. Marcello Caetano, que apesar de ser presidente do Conselho dava a primeira aula, dizia da minha família que éramos “jurismamíferos”. Porém, nesse início de ano de 1974, Direito já não era o meu sonho. Soubera por portas travessas que iria ser chamado para a tropa, o que me levou a partir para a Suécia, no final de março.
Vivia em Miraflores, num apartamento que comprara uns anos antes, e que todos os dias me lembrava a realidade dual deste país: da janela da cozinha, viam-se o Bairro das Santas Martas – uma aglomeração compacta de barracas, comprimida entre Miraflores e a Estrada de Circunvalação, com esgotos a céu aberto – e, ao longe, a Pedreira dos Húngaros, outro gueto ainda pior. Era assim, de um lado apartamentos com lareira e, do outro, barracas e miséria.
Consumia os dias numa empresa familiar, onde fazia o menos possível, e as noites no triângulo Ad Lib-Stone’s-Embuçado, consoante o estado de espírito, ou então em serões em casa com amigos, a ouvir música e conversar, que a conversa sempre fez parte da minha realidade quotidiana. Falava-se de tudo menos de política, futebol e religião. Há muito que assumira a minha condição de ateu.
Da Lisboa de então, conservo a lembrança de uma cidade triste, onde a única música que se ouvia nas ruas era tocada por cegos, normalmente em acordeões, a chamada música a metro, com a inevitável caixa de esmolas, preta, com os dizeres ABLB (Associação de Beneficência Luís Braile) ou Liga de Cegos João de Deus, e onde tudo, ou quase tudo, o que saísse da norma era olhado de esguelha. Era um país de gente que, como disse Pessoa, se pretendia que fosse “fútil, quotidiana e tributável”, gente inculta – “um povo culto é um povo infeliz”, segundo o pensamento do chefe –, e que, sobretudo, não usasse a cabeça para pensar.”
“Da Lisboa de então, conservo a lembrança de uma cidade triste, onde a única música que se ouvia nas ruas era tocada por cegos, com a inevitável caixa de esmolas.”