Faculdade de Direito vai ter “comissão independente” para prevenir assédio
Alunos foram envolvidos pela direção da faculdade na criação de novas regras. Fim do ano letivo é apontado como prazo desejável. Diretor quer apostar mais na “prevenção”. Futura “comissão independente” da Faculdade de Direito tem como “modelo referencial”
Quase dois anos volvidos sobre o início da polémica de alegados casos de assédio sexual e moral na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa ainda não existe o prometido Código de Conduta para o problema do assédio e está praticamente extinto o Gabinete de Apoio à Vítima. A direção e representantes dos estudantes garantem, no entanto, que até ao fim deste ano letivo será criada uma “comissão independente” para propor regras e novas práticas, incluindo um Código de Conduta.
Segundo Eduardo Vera-Cruz Pinto — que tomou posse como diretor a 28 de dezembro, sucedendo a Paula Vaz Freire, em cujo mandato tinha rebentado o escândalo de assédio na instituição —, a futura “comissão independente” da Faculdade de Direito tem como “modelo referencial” a “Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa”, que funcionou entre 2021 e 2023.
“Terá de ser uma entidade independente da direção da escola, deve ser coletiva e integrar especialistas que não sejam convidados pela direção”, disse Eduardo Vera-Cruz Pinto ao DN. “Passei esta tarefa ao Núcleo Feminista da faculdade, para que sejam representantes dos estudantes, a encontrar na sociedade, quem possa integrar a entidade”, acrescentou. O programa eleitoral do novo diretor já indicava que deveria ser criada uma “entidade de avaliação de primeira instância” para casos de assédio e abuso.
Segundo a presidente do Núcleo Feminista, Raquel Oliveira, estudante do 4.º ano de Direto, a “entidade independente” deverá começar “até ao fim do ano letivo”. “Já temos um conjunto de estudantes a trabalhar nisto e temos tido reuniões com a direção. Queremos reformar o Gabinete de Apoio à Vítima. As pessoas que vão tratar as queixas têm de ser externas à faculdade. Estamos a pensar num advogado e num psicólogo especializados nestas áreas. Há possibilidade de haver uma sala fisicamente situada fora da faculdade”, detalhou aquela responsável.
Foi o DN a dar a primeira notícia sobre a polémica de assédio sexual e moral na Faculdade de Direito, a 3 de abril de 2022: uma sindicância promovida durante 11 dias pela Associação de Estudantes tinha recebido 29 queixas de assédio moral e 22 queixas de assédio sexual de professores sobre alunos, sobretudo do sexo feminino, além de queixas por presumíveis práticas de sexismo, xenofobia, racismo e homofobia.
O Conselho Pedagógico da Faculdade de Direito, no qual têm assento 10 professores e 10 alunos, escolheu seis dos seus elementos para redigirem um relatório com base nas queixas, concluindo pela existência de “problemas sérios e reiterados de assédio sexual e moral perpetrados por docentes da faculdade”. O relatório foi remetido ao Ministério Público, que abriu um inquérito. Um ano depois, em abril de 2023, a Agência Lusa noticiou que as queixas foram arquivadas, pelo que nem chegaram a tribunal.
Ainda na sequência da sindicância, a então diretora da faculdade criou em maio de 2022 um Gabinete de Apoio àVítima, descrito como “estrutura que acompanha as vítimas de assédio ou discriminação até ao momento de apresentação de denúncia formal”, através de “aconselhamento jurídico” e “apoio psicológico e emocional”. O advogado e antigo bastonário Rogério Alves e a psicóloga Susana Lourenço foram nomeados para a tarefa pelas respetivas ordens profissionais e terão estado em funções apenas até dezembro de 2022. Em agosto do ano passado, a então diretora fez ainda publicar em Diário de República um projeto de Regulamento do Procedimento de Avaliação de Queixas por Assédio (que não substituía a criação de um Código de Conduta, antes permitia fixar regras para uma análise preliminar de denúncias).
No entanto, o Gabinete de Apoio à Vítima não foi ao encontro da expectativa de muitos estudantes da faculdade. “A forma como funciona não transmite confiança, sobretudo porque não há garantias de imparcialidade na nomeação dos seus membros, porque a Ordem dos Advogados pode ser liderada por professores da casa”, disse Raquel Oliveira ao DN. O Gabinete de Apoio à Vítima está neste momento “em inércia”, segundo a estudante. O DN contactou insistentemente o gabinete através de e-mail, mas não obteve qualquer resposta.
Quanto ao projeto de regulamento, foi contestado em Reunião Geral de Alunos. O aspeto “mais gritante”, no dizer da presidente do Núcleo Feminista, era a regra segundo a qual pode haver “abertura de procedimento disciplinar contra o denunciante ou queixoso” sempre que se “conclua que a queixa ou denúncia é dolosamente apresentada no intuito de prejudicar outrem, ou que contém matéria difamatória”. “Esta possibilidade de reverter o processo foi fortemente contestada pelos alunos”, argumentou Raquel Oliveira.
O diretor, Eduardo Vera-Cruz Pinto, disse acreditar que também até ao fim do ano letivo deverá estar pronto um Código de Conduta específico para os problemas do assédio e do abuso, o qual vem sendo prometido pela direção da Faculdade de Direito desde pelo menos abril de 2022.
“A minha primeira preocupação, nas questões de assédio e abuso, é a prevenção. As questões disciplinares também implicam a faculdade, mas a repressão é para a Justiça. Queremos ter manuais de boas-práticas e de conduta, que sejam devidamente publicitados”, afirmou Eduardo Vera-Cruz Pinto.