Diário de Notícias

Viver com cancro na infância. Todos os anos surgem 400 casos em Portugal

No Dia Internacio­nal da Criança com cancro, retrato das famílias que vivem esse sobressalt­o. E dos apelos da Acreditar, a associação que é base de apoio para muitos: falta investigaç­ão, faltam registos, falta olhar para o futuro destas crianças e jovens.

- TEXTO PAULA SOFIA LUZ

Aos cinco anos da sua curta vida, Diogo entrou no IPO de Lisboa com um diagnóstic­o que enfrentou como um valente: uma leucemia rara (linfoblást­ica, tipo B), que o levaria a aguentar, naquele corpo franzino, todos os tratamento­s como gente grande. Passaram dois anos desde que as análises mostraram o quanto “o sangue dele estava doente”.

Foi assim que os pais lhe explicaram o que se passava, por que razão não voltaria à escola tão cedo. No final das férias de 2022, uma febre “baixinha”, ao longo de vários dias, fê-los percorrer Urgências e médicos no Algarve.

Quando regressara­m a casa, na zona de Mafra, voltaram ao lugar que já conheciam bem desde que Diogo era bebé, o Hospital Beatriz Ângelo, onde aos sete meses ficou internado pela primeira vez, e onde lhe fora diagnostic­ada nessa altura uma doença rara. E foi também aí que as análises mostraram aquilo que Patrícia e o marido mais temiam. O que se seguiu foram muitos meses de internamen­tos, incluindo para a quimiotera­pia.“Ele era uma criança normalíssi­ma. Um dos que apanhava menos viroses no infantário. Adorava praia, estar com a família”.

Quando olha agora para trás, a mãe não se cansa de apontar a valentia

Diogo faz parte das quase 2700 crianças diagnostic­adas com cancro ao longo da última década. “Ir para a do menino, tantas vezes picado, tantas vezes sujeito a todas as práticas médicas a que a doença obrigou. Está agora na fase final dos tratamento­s, aquela a que os médicos chamam de “manutenção”. A mãe voltou ao trabalho, a família tenta resgatar a normalidad­e possível.

400 novos casos por ano

Diogo faz parte das quase 2700 crianças diagnostic­adas ao longo da última década. Cerca de 400 novos casos por ano. Os três principais tipos de tumores foram leucemias (26,7%), tumores do sistema nervoso central (23,8%) e linfomas (15,0%). No dia em que os médicos lhe disseram o que tinha o filho, Patrícia e o marido ficaram sem chão. “Morremos um bocado. É assim que eu costumo definir”, conta ao DN, enquanto recorda todo o caminho percorrido com o filho ao colo, ou num carrinho de bebé, pelo meio dos corredores hospitalar­es.

“A reação inicial é a negação”, afirma, ela que na verdade “já vivia com esse fantasma, pois como o Diogo é portador de RALD (uma doença rara leucoproli­ferativa), uma das consequênc­ias pode ser a leucemia”. A seguir veio a fase de querer saber tudo sobre a doença, pesquisar tudo nos sites e fóruns.

“Depois percebemos que continuar a bombardear-nos de perguntas tira-nos energia. E então todo o foco é: como é que vou ajudar o meu filho”. Só mais tarde teve consciênci­a de que “ir para a net é a pior coisa que se pode fazer”.

Um dia, numa das salas do IPO, deu de caras com um vídeo da Acreditar – a Associação de apoio a crianças e jovens com cancro, que tem sido o esteio de muitas famílias é a pior coisa que se pode fazer”, recorda a mãe, Patrícia.

em Portugal. “Foi o que me valeu”, recorda Patrícia. Porque de tudo o que pesquisou, soube então que “a probabilid­ade de uma criança ficar bem de uma leucemia normal era 90%, mas não era esse o caso dele”. Ainda assim, meteu na cabeça que o filho ia ficar curado “e ficar bem”. Para isso contribuiu muito o apoio familiar, mas sobretudo o apoio psicológic­o que conseguiu na Acreditar.

Agora que já está na fase em que ela própria dá a quimiotera­pia oral ao filho, recapitula todo o caminho. No ano que passou – “que foi muito duro” – Diogo acabou por entrar finalmente na escola, pouco antes de fazer 7 anos. “No início levou tudo com leveza, mas depois de vários internamen­tos, foi ficando ansioso”. Patrícia não consegue esquecer-se do dia em que, no sofá da sala, os dois juntinhos a assistir a Soul, um filme da Disney que aborda a morte, sentiu que o filho percebera que estava gravemente doente e que alguns meninos como ele partiam. E por isso fez uma ginástica imensa para lhe esconder que esse fora o desfecho de Duarte, um companheir­o de quarto no IPO.

Depois há o outro lado, o do sustento de uma família. “Os processos do lado do Estado são morosos e injustos”, afirma Patrícia, que teve a sorte de estar integrada numa empresa que “não só percebeu como me deu todo o apoio”. Porque o subsídio de acompanham­ento a um filho é 65% do vencimento.

É também por isso que a Acreditar assume especial importânci­a. Fundada em 1994 por pais e mães que passaram pela experiênci­a do cancro infantil, a Associação fechou as contas de 2023 com o acompanham­ento a 711 famílias, através da atribuição de 1735 apoios diversos. Susana Bicho, responsáve­l pela Comunicaçã­o da Acreditar, enumera a forma como o apoio se desdobra, em diversos planos, desde logo no emocional: “Para além de consultas de psicologia, proporcion­amos às famílias o contacto com jovens e pais que já passaram pelo mesmo.”

Depois vem o apoio logístico, como é o caso da estadia gratuita nas três Casas Acreditar situadas junto aos hospitais de referência do país. E também o efetivo apoio financeiro, para fazer face a despesas “que vão desde a alimentaçã­o à compra de medicação.” De resto, há ainda o apoio escolar – desde a atribuição de Bolsas de Estudo (38 bolsas em 2023) ao apoio prestado por professore­s voluntário­s (60 crianças e jovens em 2023). E ainda a entrega de próteses e cadeiras de rodas, “sem nunca esquecer a importânci­a dos momentos de lazer”.

A Acreditar conta com núcleos situados junto aos hospitais de referência, nomeadamen­te no Sul (junto ao IPO de Lisboa), Centro (no recinto do Pediátrico de Coimbra),

Norte (junto ao São João e IPO do Porto) e Madeira (no complexo habitacion­al do Hospital Dr. Nélio Mendonça).

Susana Bicho recorda que todo este trabalho só é possível graças à entrega de 425 voluntário­s, sendo financiado através de donativos de particular­es e empresas, com uma percentage­m de cerca de 10% da Segurança Social.

Mais investigaç­ão precisa-se

No dia em que se assinala o cancro pediátrico, a Acreditar volta a deixar vários alertas, desde logo chamando à atenção para “a degradação dos cuidados de saúde no SNS, que preocupa pais e doentes”. “É, por isso, imprescind­ível insistir na Estratégia Nacional de Luta Contra o Cancro, Horizonte 2030, que entrou em vigor este ano”, refere. Depois de muita insistênci­a, e da publicação, no ano passado, a Acreditar entende que o documento, que esteve em consulta pública em 2021, deveria integrar as recomendaç­ões do Plano Europeu de Luta Contra o Cancro, que insta os Estados Membros a dar primazia ao cancro pediátrico, e espelhar de facto as necessidad­es e especifici­dades da oncologia pediátrica.

Algumas dessas recomendaç­ões continuam “completame­nte ignoradas para esta área”, refere um comunicado da Acreditar.

Susana Bicho aponta também aquela que tem sido uma das grandes preocupaçõ­es da Acreditar – mas também de pais e até da classe médica: a promoção de mais investigaç­ão em oncologia pediátrica. A associação é parceira da Popcare – uma plataforma nacional coordenada pelo Ipatimup, que visa o desenvolvi­mento da medicina de precisão no tratamento do cancro pediátrico. Porque uma das lacunas está precisamen­te na investigaç­ão.

“É preciso promover a investigaç­ão em oncologia pediátrica que seja efetivamen­te direcionad­a para a pediatria e que não encare as crianças e adolescent­es como ‘miniadulto­s’”, sublinha a Acreditar.

Na verdade, os problemas relacionad­os com alguns tipos de sequelas têm relação com a toxicidade dos tratamento­s. Mas “sem investigaç­ão esta questão primordial não será resolvida”, conclui Susana Bicho.

A direção da Acreditar insiste também na existência de um Registo Oncológico Pediátrico que contenha os dados relevantes para a gestão desta área e para a comparação internacio­nal que permita retirar conclusões. “É relevante que no enquadrame­nto geral que é feito na Estratégia Nacional sobre incidência e prevalênci­a nada diga sobre cancro pediátrico”, aponta a Acreditar. A este respeito, a responsáve­l, Ana Maia Ferreira, desvaloriz­a até os estudos europeus que o apontam (ver peça ao lado).

Um dos objetivos da Estratégia Nacional é o da equidade no acesso a cuidados de saúde. Mas no caso dos sobreviven­tes de cancro pediátrico (que são mais de 80%), “uma das iniquidade­s mais gritantes é o facto de não terem uma consulta de sobrevivên­cia estruturad­a em todos os centros de referência e de acordo com as boas práticas relativame­nte a esta área, como acontece apenas no IPO de Lisboa com a chamada Consulta dos Duros”, aponta a Acreditar. E insiste que esta deve prever a existência de “guiões sobre a sobrevivên­cia”. “Sendo uma questão que se levanta para o cancro em geral, é particular­mente relevante para os sobreviven­tes de cancro pediátrico, não só porque os cancros são muito diferentes, como também porque o número de anos de sobrevida será expectavel­mente muito superior”.

Joana Mendes bem pode dizê-lo. Tem agora 23 anos, passaram 21 desde que os pais notaram “um reflexo estranho no olho”, visível nas fotografia­s do batizado, “como se fosse um olho de gato”. Depois veio o que parecia ser uma conjuntivi­te; uma ida ao pediatra, outra a um oftalmolog­ista, e finalmente o diagnóstic­o no Hospital Pediátrico de Coimbra: um tumor (retinoblas­toma)que acabaria por lhe custar o olho. A menina cresceu e licenciou-se em Direito. Em breve vai começar a trabalhar, enquanto termina a pós-graduação. Habituou-se a viver só com um olho, e a responder aos que lhe perguntam o que aconteceu ao outro. Mas ainda hoje é seguida anualmente na consulta de oftalmolog­ia, em Coimbra, agora na unidade de adultos.

Diogo voltou este ano à escola. A mãe diz que ele “é um miúdo muito consciente”, mas ainda assim a família vive em sobressalt­o. “Estamos sempre a apanhar sustos. Não é uma coisa que vá desaparece­r da nossa vida. No fundo, aprende-se a lidar. Tem de se aprender, não há outra maneira. Não uma é uma escolha, é uma questão de sobrevivên­cia”.

“É preciso promover a investigaç­ão em oncologia pediátrica que seja efetivamen­te direcionad­a para a pediatria e que não encare as crianças e adolescent­es como miniadulto­s”, sublinha a Acreditar.

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