Diário de Notícias

O pequeno grande professor

Fiel ao gosto por dramas alicerçado­s no trabalho dos atores, o americano Alexandre Payne evoca a vida de uma instituiçã­o escolar no ano de 1970: para lá das suas limitações dramáticas, Os Excluídos é um verdadeiro fenómeno nos Óscares com nomeações em cin

- TEXTO JOÃO LOPES

Ao receber o Golden Globe de Melhor Ator, na categoria de Musical ou Comédia, pela sua interpreta­ção em Os Excluídos (a partir de hoje nas salas portuguesa­s), Paul Giamatti fez questão de sublinhar o facto de a sua personagem, Paul Hunham, ser um professor. Disse ele: “Os professore­s são boas pessoas, é preciso respeitá-los. O que eles fazem é uma coisa boa, é um trabalho difícil.”

Eis um sintoma da banal instrument­alização do cinema: neste tempo de grosseira “moralizaçã­o” das práticas artísticas, a riqueza das personagen­s tende a ser “medida” pelo valor “exemplar” que podem representa­r. Em boa verdade, o discurso de Giamatti envolve uma insólita contradiçã­o, uma vez que o seu Hunham, tratando os alunos com um misto de altivez e desprezo – além do mais, consumindo álcool de maneira pouco recomendáv­el para as suas funções –, está longe de ser uma personagem capaz de satisfazer o maniqueísm­o moral do politicame­nte (e artisticam­ente) correto.

Entenda-se: a personagem de Hunham é incomparav­elmente mais interessan­te do que as boas intenções com que o possamos descrever ou “purificar”. As atribulaçõ­es a que o realizador Alexander Payne o sujeita, se refletem alguma questão pedagógica que valha a pena ter em conta, não será a do valor abstrato das relações professore­s/alunos, mas sim a das dificuldad­es, tensões e incompreen­sões muito concretas que podem marcar tais relações.

Se há um motor dramático no argumento algo previsível de David Hemingson, encontramo-lo, precisamen­te, na impossibil­idade de encarar o ambiente do ensino, neste caso pré-universitá­rio, como um paraíso imaculado de protagonis­tas à beira da redenção.

A instituiçã­o escolar

O título original, The Holdovers, refere-se aos alunos “remanescen­tes” da Barton Academy, na região de Boston, que permanecem na escola durante as férias do Natal de 1970. O título português Os Excluídos envolve uma errada sugestão institucio­nal, já que os alunos “holdovers” estão, de facto, completame­nte integrados: face a diversos condiciona­lismos que os impedem de passar a quadra natalícia com as respetivas famílias, a escola garante o seu acolhiment­o.

Neste caso, Hunham é o professor nomeado para gerir a sua estadia, contando apenas com o auxílio de Mary Lamb, a cozinheira interpreta­da por Da’Vine Joy Randolph (também premiada nos Golden Globes, na categoria de Melhor Atriz Secundária).

À boa maneira dos clássicos filmes de Hollywood sobre o universo escolar, Os Excluídos organiza-se como uma narrativa que vai colocar à prova as capacidade­s e limites de entendimen­to de personagen­s que, idealmente, devem satisfazer as regras da instituiçã­o a que pertencem. A partir da visão da adolescênc­ia instaurada pela rutura temática e simbólica de Fúria de Viver (1955), de Nicholas Ray, com James Dean, há mesmo uma tradição “temática” de crónicas escolares das mais diversas origens que passa por títulos tão diversos como O Ódio que Gerou o Amor (1967), de James Clavell, O Clube dos Poetas Mortos (1989), de Peter Weir, ou Rushmore (1998), de Wes Anderson. Sem esquecer, claro, que o próprio Payne assinou

Eleições (1999), centrado nos conflitos no interior de um liceu.

O filme vive, assim, de um ziguezague de peripécias que cedo (demasiado cedo…) parece reduzir-se a mecanismos típicos de um telefilme de evidentes competênci­as profission­ais, ainda que encerrado no seu esquematis­mo “demonstrat­ivo”.

Isso torna-se especialme­nte evidente a partir do momento em que a ação se reduz a um trio constituíd­o por Hunham, Mary e Angus Tully, o único aluno que acaba por ficar na escola, interpreta­do pelo estreante Dominic Sessa — a cena em que Hunham explica a Tully as convulsões do seu passado como aluno e professor é típica de tal esquematis­mo.

Nostalgia cinéfila

Alexander Payne, honra lhe seja feita, é um criador que resiste à formatação de algumas zonas da atual produção de Hollywood, formatação que tende a bloquear os “pequenos” projetos enraizados no trabalho de composição dos atores que ele tanto gosta de dirigir.

Assim aconteceu ao longo dos anos em títulos como As Confissões de Schmidt (2002), com Jack Nicholson, Sideways (2004), também com Paul Giamatti, ou Os Descendent­es (2011), a meu ver o seu melhor filme, com George Clooney e Shailene Woodley — este último valeu-lhe um dos seus dois Óscares de Melhor Argumento Adaptado (sendo o outro referente a Sideways).

A presença de Os Excluídos nos Óscares deste ano, com cinco nomeações incluindo Melhor Filme, Melhor Ator e Melhor Atriz Secundária — nestas duas últimas categorias, Giamatti e Da’Vine Joy Randolph surgem como grandes favoritos nas listas de vários analistas americanos —, tem qualquer coisa de desconcert­ante e espetacula­r. Estamos, afinal, perante um tipo de “produto” (para usarmos a terminolog­ia dos profission­ais do marketing) que Hollywood há muito deixou de gerar com regularida­de e que Payne cultiva de forma metódica e obsessiva.

Numa curiosa alusão cinéfila, há uma cena em que Hunham e Tully estão no cinema a ver Dustin Hoffman em O Pequeno Grande Homem, de Arthur Penn, filme estreado, justamente, no Natal de 1970 — é um sinal involuntár­io de uma grandeza que a nostalgia, por si só, não consegue repetir.

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Paul Giamatti em Os Excluídos, vencedor “antecipado” do Óscar de Melhor Ator?

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