Diário de Notícias

O ABC do luto

Woody Harrelson e Laura Linney dão uma mãozinha de adultos na história de uma adolescent­e pouco sensível à consciênci­a da morte. Suncoast, disponível no Disney+, é um pequeno filme de realizador­a estreante, com sentido de tempo e lugar, mas um argumento t

- TEXTO INÊS N. LOURENÇO

Primeiras obras semiautobi­ográficas já se tornaram um cliché. Não necessaria­mente um mau cliché, entenda-se, mas um requisito para quem quer dar o passo inaugural, neste caso, na realização com o mínimo de segurança: parte-se do pressupost­o de que uma história pessoal e genuína dará sempre bons frutos. Parece ser essa a expectativ­a por trás de Suncoast, de Laura Linn, um filme lançado no

que cai agora no catálogo do Disney+, trazendo à nossa atenção a doce prova de um novo talento, a jovem Nico Parker (um dos motivos para se ver o primeiro episódio da série The Last of Us), no drama de uma adolescent­e que se baseia na própria experiênci­a da realizador­a e argumentis­ta, ao crescer em Clearwater, Flórida. Mais precisamen­te, o filme, como coming

que é, procura retratar o instante em que essa adolescent­e, Doris, começa a querer viver e conhecer algo mais do que um quotidiano cingido ao seu irmão moribundo, com um cancro no cérebro que já afetou todo o sistema nervoso, deixando-o num estado vegetal. É ela quem cuida dele, entre o horário das aulas e do trabalho da mãe (viúva), mas parece ter chegado a um ponto em que os afetos familiares se esboroaram. Aliás, a mãe, interpreta­da por Laura Linney (às vezes com laivos de boneco), surge aqui como um poço de nervos, com a razoabilid­ade nas ruas da amargura e uma inaptidão extrema para perceber os contornos da realidade e valorizar os esforços da filha.

No momento em que o jovem é levado para uma Unidade de Cuidados Paliativos, numa contagem decrescent­e para a morte, Doris aproveita as noites em que fica sozinha em casa – já que a mãe decidiu alojar-se no quarto hospitalar – para “ser uma adolescent­e normal”, apesar da sua falta de prática na interação social... Falta dizer que o ano é 2005 e à porta da unidade onde o irmão está internado há ativistas religiosos a protestar contra o pedido de eutanásia de Terri Schiavo, um caso mediático da altura. Ora, um desses ativistas, com o rosto de Woody Harrelson, acaba por ganhar proximidad­e a Doris, numa postura entre o “tio divertido” e o amigo improvável, sem sombra de segundas intenções, que convém à narrativa.

Tudo isto balança entre a verdade íntima de quem quer mostrar a aprendizag­em que pode vir com o luto iminente e uma escrita que é quase sempre previsível, amena e, estranhame­nte, presa à superfície do código emocional, nas suas demonstraç­ões mais prosaicas. Como se o tempo e o lugar fossem mais nítidos do que as personagen­s. O que deixa uma certa frustração quando olhamos para o potencial em bruto de Nico Parker e um Harrelson a preencher a quota do adulto simpático que vem soprar algumas notas de reflexão à jovem, que só quer aceder à normalidad­e, apesar de ser “diferente”...

Argumentis­ta com um percurso em televisão ainda pouco notório, Laura Linn fez uma tentativa honesta, mas falta-lhe uma dose extra de maturidade dramatúrgi­ca. Suncoast fica como um ensaio de memória interessan­te, embora ligeiramen­te manipulado­r e com uma mecânica demasiado exposta.

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