Tão bom, maltratar os políticos
Não creio que descriminalizar o abuso de poder de um funcionário seja necessariamente um bom sinal em termos de vida pública.
Um amigo assinalou-me que, em Itália, o seu Governo, tão amigo do Chega deVentura, se prepara para abolir o crime de abuso de funções ou de poder por parte de político ou funcionário. A proposta de lei foi apresentada no Parlamento e aguarda votação. Razão aduzida: os políticos receiam assinar contratos e adjudicar concursos, com receio de virem a ser demandados no futuro, desde logo em virtude de demasiadas ligações mafiosas de diversas empresas. Afirma também o Governo italiano que a larga maioria dos inquéritos judiciais nesta matéria demora demasiados anos, é demasiado dispendiosa e não leva a condenações. E, perante preocupações de outros, por eventual incumprimento de direito da União Europeia em virtude desta descriminalização, que a Itália tem já suficiente legislação de combate à corrupção. Entretanto, perante esta anunciada lei, três mil julgamentos em curso foram suspensos.
Para além da curiosidade fácil, de ter um Governo de direita populista a remover crimes associados a corrupção, note-se também que a esquerda italiana de Matteo Renzi, antigo primeiro-ministro, apoia esta descriminalização.
Não creio que descriminalizar o abuso de poder de um funcionário seja necessariamente um bom sinal em termos de vida pública, como se nota, aliás, pelas diversas notícias, também internacionais, sobre o assunto. Mas é um claro aviso sobre os tempos que se vivem. Tempos de um enorme cansaço provocado pela banalização e generalização na cobertura do direito penal sobre toda a atividade pública. Tempos de suspeição global, tantas vezes injustificada, lançada impunemente sobre titulares de cargos públicos, por longos períodos, ao sabor de uma gestão de investigações seguramente questionável, mas, na prática, impossível de sindicar e avaliar. E tempos em que a capacidade de recrutamento e de atração para a atividade política e para a direção de serviços públicos naturalmente está limitada, pois muitos, justamente, não querem ser epigrafados de criminosos antes de qualquer julgamento ou condenação ou correr riscos até financeiros, perante a enorme incerteza de decisões que surjam no futuro.
Dizia-me um professor, antigo reitor de uma universidade pública, que uma das primeiras coisas que tinha feito, ao assumir essas funções, fora um seguro que garantisse eventuais compensações que tivesse de pagar por decisões administrativas por si tomadas, de boa-fé e com respeito pelo que lhe diziam ser os regimes legais, mas que porventura viessem mais tarde a ser contrariadas pelo Tribunal de Contas ou por outra entidade sucedânea, noutras interpretações. Por esse seguro de responsabilidade financeira pessoal pagava largos milhares de euros por ano de prémio, mas acreditava dar-lhe outra tranquilidade.
Claro que tudo isto é dificilmente apresentável e discutível num contexto público, treinado para se sobressaltar emocionado à primeira seminotícia sobre uma eventual censura a um político ou afim. Pagar adequadamente a políticos é um tema tabu. Esclarecer melhor qual deve ser a sua eventual responsabilidade, desde logo financeira, perante as suas decisões e os processos em que foram tomadas, outro.
Chegará o dia, por absurdo, em que os contratos públicos serão adjudicados por uma espécie de democracia direta digital, em que todos votam na que creem ser a melhor proposta no seu smartphone? E ficando cada um com 0,000001% da responsabilidade pela sua execução? Como escreve Byung-Chul Han, no seu mais recente Infocracia, o fim da representação política que vivemos não trouxe aquilo que ingenuamente se acreditou ser mais poder às pessoas, mas apenas a sua dissociação do que é e deve ser comum, isolados na sua bolha de convicções e interesses pessoais. E o preço disso é cada vez mais elevado.