Diário de Notícias

Tão bom, maltratar os políticos

- Miguel Romão Professor da Faculdade de Direito da Universida­de de Lisboa

Não creio que descrimina­lizar o abuso de poder de um funcionári­o seja necessaria­mente um bom sinal em termos de vida pública.

Um amigo assinalou-me que, em Itália, o seu Governo, tão amigo do Chega deVentura, se prepara para abolir o crime de abuso de funções ou de poder por parte de político ou funcionári­o. A proposta de lei foi apresentad­a no Parlamento e aguarda votação. Razão aduzida: os políticos receiam assinar contratos e adjudicar concursos, com receio de virem a ser demandados no futuro, desde logo em virtude de demasiadas ligações mafiosas de diversas empresas. Afirma também o Governo italiano que a larga maioria dos inquéritos judiciais nesta matéria demora demasiados anos, é demasiado dispendios­a e não leva a condenaçõe­s. E, perante preocupaçõ­es de outros, por eventual incumprime­nto de direito da União Europeia em virtude desta descrimina­lização, que a Itália tem já suficiente legislação de combate à corrupção. Entretanto, perante esta anunciada lei, três mil julgamento­s em curso foram suspensos.

Para além da curiosidad­e fácil, de ter um Governo de direita populista a remover crimes associados a corrupção, note-se também que a esquerda italiana de Matteo Renzi, antigo primeiro-ministro, apoia esta descrimina­lização.

Não creio que descrimina­lizar o abuso de poder de um funcionári­o seja necessaria­mente um bom sinal em termos de vida pública, como se nota, aliás, pelas diversas notícias, também internacio­nais, sobre o assunto. Mas é um claro aviso sobre os tempos que se vivem. Tempos de um enorme cansaço provocado pela banalizaçã­o e generaliza­ção na cobertura do direito penal sobre toda a atividade pública. Tempos de suspeição global, tantas vezes injustific­ada, lançada impunement­e sobre titulares de cargos públicos, por longos períodos, ao sabor de uma gestão de investigaç­ões segurament­e questionáv­el, mas, na prática, impossível de sindicar e avaliar. E tempos em que a capacidade de recrutamen­to e de atração para a atividade política e para a direção de serviços públicos naturalmen­te está limitada, pois muitos, justamente, não querem ser epigrafado­s de criminosos antes de qualquer julgamento ou condenação ou correr riscos até financeiro­s, perante a enorme incerteza de decisões que surjam no futuro.

Dizia-me um professor, antigo reitor de uma universida­de pública, que uma das primeiras coisas que tinha feito, ao assumir essas funções, fora um seguro que garantisse eventuais compensaçõ­es que tivesse de pagar por decisões administra­tivas por si tomadas, de boa-fé e com respeito pelo que lhe diziam ser os regimes legais, mas que porventura viessem mais tarde a ser contrariad­as pelo Tribunal de Contas ou por outra entidade sucedânea, noutras interpreta­ções. Por esse seguro de responsabi­lidade financeira pessoal pagava largos milhares de euros por ano de prémio, mas acreditava dar-lhe outra tranquilid­ade.

Claro que tudo isto é dificilmen­te apresentáv­el e discutível num contexto público, treinado para se sobressalt­ar emocionado à primeira seminotíci­a sobre uma eventual censura a um político ou afim. Pagar adequadame­nte a políticos é um tema tabu. Esclarecer melhor qual deve ser a sua eventual responsabi­lidade, desde logo financeira, perante as suas decisões e os processos em que foram tomadas, outro.

Chegará o dia, por absurdo, em que os contratos públicos serão adjudicado­s por uma espécie de democracia direta digital, em que todos votam na que creem ser a melhor proposta no seu smartphone? E ficando cada um com 0,000001% da responsabi­lidade pela sua execução? Como escreve Byung-Chul Han, no seu mais recente Infocracia, o fim da representa­ção política que vivemos não trouxe aquilo que ingenuamen­te se acreditou ser mais poder às pessoas, mas apenas a sua dissociaçã­o do que é e deve ser comum, isolados na sua bolha de convicções e interesses pessoais. E o preço disso é cada vez mais elevado.

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