Diário de Notícias

Futuros médicos dizem que já há vinculação na especialid­ade, onde trabalham muito e ganham pouco

- A.M.I. e R. F.

Pagam as mesmas propinas que qualquer outro estudante do ensino superior, mas durante seis anos. Depois, fazem mais quatro a seis anos de formação específica, especialid­ade, com contrato de trabalho de 40 horas no SNS, mas a trabalhar “muito mais”. E, por isto, a representa­nte dos estudantes de Medicina diz que a “sugestão” do PS de vincular os jovens médicos ao serviço público depois do curso “não faz sentido, já existe”.

Afalta de recursos médicos nos sistemas de saúde públicos não é um problema só de Portugal. Outros países da União Europeia e do resto do mundo passam pelo mesmo – a Albânia, por exemplo, aprovou em julho do ano passado um sistema idêntico, que levou os estudantes à rua com protestos. Mas, por cá, é a segunda vez que um dirigente do Partido Socialista lança para cima da mesa a hipótese de os jovens médicos terem de ficar vinculados ao Serviço Nacional de Saúde (SNS) durante um período após o curso. Em 2019, a ideia foi lançada pela ex-ministra da Saúde Marta Temido e, em 2024, há poucos dias, pelo próprio líder do PS, Pedro Nuno Santos, durante a apresentaç­ão do programa eleitoral. As reações não se fizeram esperar. Os sindicatos médicos considerar­am a medida “ilegal e discrimina­tória” e o ex-ministro socialista Adalberto Campos Fernandes catalogou-a como “estalinist­a” e de “ilegalidad­e duvidosa”. Contudo, o líder do PS acabou por vir esclarecer que a inclusão da medida no programa eleitoral está ao nível da “sugestão” e que esta será discutida com todas as entidades do setor.

Para os estudantes, futuros profission­ais, “a medida não faz sentido”, explica ao DN a representa­nte de todas as associaçõe­s estudantis de faculdades de Medicina, Rita Ribeiro. “Em primeiro lugar, porque os jovens médicos já têm um período de vinculação de quatro a seis anos ao SNS, após a sua formação académica. Só 0,8% das vagas para as especialid­ades estão no privado, 99,2% estão no serviço público, com quem se faz um contrato de trabalho de 40 horas semanais, por um período de quatro a seis anos. E todos sabemos que durante estes anos os médico internos (que já são um terço do total de médicos do SNS, cerca de 10 mil dos 31 mil), trabalham muito mais do que as 40 horas e a ganhar mal. Tendo, ao mesmo tempo, que estudar para os exames anuais, fazer investigaç­ão e publicar trabalhos.”

Por tudo isto, a presidente da Associação Nacional dos Estudantes de Medicina (ANEM) reforça que a medida não só não faz sentido como pode ser desmotivad­ora para quem está a meio deste caminho. “A entrada no curso de Medicina tem uma vertente muito mais de vocação do que carreira, mas ao longo do curso vamos compreende­ndo o que pode ser o nosso futuro. E uma medida como esta pode efetivamen­te desmotivar as pessoas”.

A presidente da ANEM argumenta mesmo que “não é esta medida que irá resolver os problemas do SNS”, relembrand­o um estudo realizado recentemen­te, em parceria com ANEM, Ordem dos Médicos e Associação dos Administra­dores Hospitalar­es, que revelava os aspetos mais apreciados pelos futuros médicos no SNS e os que deveriam ser melhorados. E neste último grupo destacam-se “as condições de trabalho, com reforço de recursos humanos e materiais, e o salário base”. E estas “são as questões que importam resolver”, reforça Rita Ribeiro. “A esmagadora maioria dos meus colegas quer ficar no SNS, foi a vocação e a prestação de cuidados de saúde dignos aos doentes que nos levou para a Medicina, mas durante o curso vemos como é que funciona o SNS e fala-se cada vez mais, não da intenção de emigrar logo, mas do assunto como uma possibilid­ade, se as condições de trabalho não forem melhoradas e se não podermos tratar os doentes de forma adequada. E isto é que deve ser resolvido no SNS”, sustenta.

Mas há mais. A estudante do 6.º ano, último do curso destinado à formação geral, com estágios em várias áreas da Medicina, destaca outro aspeto: “Se pagamos as mesmas propinas que qualquer outro estudante do Ensino Superior durante seis anos, e se aos outros é dada a flexibilid­ade de escolha do local de trabalho, porque é que isso tem de ser retirado aos estudantes de Medicina? Isto tem de ser transversa­l a todos os estudantes.” Esta é, aliás, umas das questões que tem levado os sindicatos médicos a dizerem que a medida “é discrimina­tória”.

Rita avança ainda com o argumento de que “hoje vivemos num espaço europeu muito amplo e de livre circulação de pessoas”. Portanto, “uma medida destas pode ser desmotivad­ora para a fixação de médicos em Portugal”.

Quando questionad­a sobre o facto de o curso de Medicina ficar mais caro ao Estado do que outros, Rita considera que tal é mais uma perceção do que uma objetivida­de, já que “não há uma avaliação de custos dos vários cursos”. Além do mais, sublinha, na especialid­ade os médicos internos estão muito dependente­s dos médicos assistente­s, que os ensinam, e a esmagadora maioria destes nada recebe do SNS por esta atividade”. Uma das bandeiras de há muito da ANEM é a necessidad­e de planear os recursos do SNS adequadame­nte e Rita Ribeiro reforça que “é para isto que é importante olhar e trabalhar, e não para a vinculação dos médicos que é uma não questão”.

Albânia aprovou sistema que obriga jovens médicos a ficar no serviço público

Em julho de 2023, os estudantes de Medicina albaneses saíram à rua para protestar contra uma lei aprovada pelo Governo que os obriga a trabalhar no serviço público durante cinco anos após a licenciatu­ra. Disto mesmo davam conta notícias de órgãos de comunicaçã­o internacio­nais, que destacavam a ameaça feita pelos estudantes: “Boicotar o início do novo ano letivo”, por considerar­em que a nova lei era “injusta e inconstitu­cional, violando os direitos humanos”.

De acordo com as mesmas notícias, esta lei, aprovada para colmatar a falta de de médicos no serviço público, impunha aos estudantes duas hipóteses: ou assinavam um contrato com o Estado para ficarem mais cinco anos no serviço público ou pagavam a totalidade das propinas durante o curso. Uma e outra opção seriam assumidas num acordo com a Universida­de de Medicina de Tirana – a única instituiçã­o pública na Albânia com o curso.

Dados oficiais indicavam que mais de três mil médicos deixaram a Albânia na última década. Em abril de 2023, o Governo albanês aumentou os salários dos médicos, passando os médicos de família para cerca de 1300 euros e os enfermeiro­s para 850 euros por mês. O salário médio na Albânia é de cerca de 550 euros.

“Se pagamos as mesmas propinas que qualquer outro estudante do Ensino Superior durante seis anos, e se aos outros é dada a flexibilid­ade de escolha do local de trabalho, porque é que isso tem de ser retirado aos estudantes de Medicina? Isto tem de ser transversa­l a todos os estudantes.”

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