Festival de Berlim Cillian Murphy e as madres dos infernos
Arrancou ontem a 74.ª edição do Festival de Berlim. Um arranque pouco entusiástico com o insonso Small Things Like These, de Tim Mielants, história de acusação a práticas de abuso católico na Irlanda profunda. Pretexto para a Berlinale convocar uma das gr
Opedigree estava todo lá: projeto a partir de material literário de Claire Keegan, a escritora que originou The Quiet Girl - A Menina Silenciosa, filme de Colm Bairéad que foi nomeado ao Óscar de melhor obra internacional o ano passado; adaptado pelo dramaturgo Enda Walch, produzido por Matt Damon e Ben Affleck e protagonizado pelo ator mais procurado do mundo, Cillian Murphy, fresco das nomeações de Oppenheimer, de Christopher Nolan, na temporada dos prémios. Ainda assim, Small Things Like These, de Tim Mielants com honras de abertura da 74.ª Ber- linale, deixou um amplo lastro de desilusão.
Situado em New Ross, algures no condado irlandês de Wexford, esta é uma história de denúncia dos horrores das “lavandarias” das Madalenas, asilos das madres católicas que maltrataram durante décadas jovens que eram lá capturadas e forçadas a trabalho duro e cruel. Uma prática que se tornou num dos grandes flagelos da Igreja Católica irlandesa até aos anos 1990, afetando a vida de milhares de jovens inocentes. Cillian Murphy é um pai de cinco filhas, um homem honesto e sossegado que é confrontado por uma vítima do convento que lhe pede ajuda. Mas ao poder ajudar a jovem maltratada pode estar a confrontar toda uma comunidade que compactuou sempre com silêncio com os crimes de uma instituição que, na fachada, dizia recuperar as almas perdidas. O belga Tim Mielants está a tentar filmar um pacto social de silêncio.
Com uma toada contemplativa e vagarosa, Small Things Like These peca por pedinchar relevância do “tema”, ou seja, força a barra. O seu estilo de “slow cinema” demasiado adornado, demasiado musicado, joga contra si, mesmo que a presença de Cillian Murphy contenha uma força gravitacional importante. O seu rosto imbuído de desconforto e pavor são trunfos apreciáveis e sua técnica de se deixar ir para dentro das personagens está lá toda mas parece não chegar. É daqueles casos que o conteúdo de choque do que é exposto não passa para nós, como se a frieza do filme fosse uma barreira.
Ao mesmo tempo, é um catálogo de clichés sobre a humilde alma irlandesa e onde se regista uma lamúria que jamais soa a justeza. A tal “infinita” tristeza irlandesa que nem com sorrisos cândidos ao som de Come on Eileen, dos Dexys Midnight Runners produz efeitos. Poder-se-á mesmo alegar pasmaceira, uma quietude que é pouco lesta com a gestão de murmúrios e silêncios dos ambientes da pequena comunidade, entre o pub local e os corredores escuros do antro dos horrores do convento. Trata-se de um convite a um trauma dos anos 1980 que Peter Mullan já tinha feito com outro afinco no drama As Irmãs de Maria Madalena, Leão de Ouro deVeneza 2002, esse sim feito no filho da navalha e sem os truques das “ambiências”. Curiosamente, Mielants chamou uma das protagonistas desse filme, Eileen Walch, que é a esposa da personagem de Cillian Murphy.
A seu favor, Small Things Like These tem uma câmara que sabe o que quer mostrar e uma direção de fotografia que trabalha de forma subtil as possibilidades da luz natural. Será aquilo que liga melhor com a devoção à tal melancolia tão “irlandesa”. Sim, porque aqui não há muitos sorrisos ou brindes com música folk. Esta é uma Irlanda de trauma e dor num retrato muito pouco católico...No elenco estão também a nomeada ao Óscar Emily Watson e Michelle Fairley.
Egdar Medina no Mercado
Enquanto isso, no Mercado, juntamente com o de Cannes, aquele onde se faz mais negócio para os distribuidores de todo o mundo, o que está no subconsciente de todos é a falta de filmes que a indústria tem para colocar à venda depois da paragem da greve dos atores e dos argumentistas. Isso e os preocupantes resultados de bilheteira que nos últimos tempos têm chegado dos EUA. E é precisamente neste European Film Market que foi selecionada a série Matilha, produção da RTP criada e produzida por Edgar Medina, um policial português (baseado numa das personagens da série Sul) que tentará aqui a sua via de exportação. E se há ficção televisiva que se pode internacionalizar é esta, qualidade não lhe falta.
Notícia também durante este mercado é a animação dispendiosa de Bong Jooon Ho, o realizador de Parasitas. O cineasta coreano depois de finalizar Mickey 17, com Robert Pattinson, projeto para a Warner, que deverá ter honras de seleção de Cannes, está a trabalhar numa longa que será o filme mais caro de sempre do cinema coreano. Uma aventura aquática sobre seres marinhos e criaturas especiais. Trata-se de um projeto rodeado de grande secretismo ao ponto de ainda nem se saber o seu título. Presume-se sim que a Sony o vá distribuir para o mundo inteiro. Cheira a fenómeno global... Ho a querer ser o novo James Cameron?!